Num primeiro momento, o que hoje se passa no parlamento não parece novidade. No entanto em consequência desta atribulada convivência parlamentar, de que são responsáveis parentais diretos os portugueses, que experimentam acrescidaspreocupações quanto ao futuro, e arrastam já a fadiga de discernir o que é de facto melhor para o país. Despesas e Receitas são “elementos” orçamentais siameses.Vivemos hoje uma situação ambígua no que diz respeito à Governação do país, tendo em conta a inconsistente e instável configuração política existente na Assembleia daRepública. O Governo tem legitimidade democrática para governar, condição necessária, mas não suficiente. No entanto só o poderá fazer se o mais importante documento estratégico de Governação, o próximo Orçamento do Estado, for exequível dentro dos padrões éticos e políticos consignados pelo programa do Governo. Corre sérios riscos de inviabilidade, nas atuais circunstâncias de incremento desmesurado da despesa, cuja proposta do PS para a abolição das receitas provenientes das portagens nas ex-SCUT, ou a mais recente proposta para a descida do IRS, redução do IVA da eletricidade, alterações na retenção na fonte nas despesas com habitação no IRS e alargamento dos apoios a estudantes, são disso exemplo..E ao que parece o anterior governo alegadamente autorizou, já depois das eleiçõeslegislativas do passado dia dez de março, um aumento de despesas sem cabimentaçãoorçamental, uma situação envolta em contornos ainda desconhecidos. Esta proposta dedescida do IRS aprovada pelo PS com a abstenção do partido CHEGA, de acordo comuma nota de admissibilidade dos serviços do parlamento, não viola a lei-travão. Ou seja,não se verificará uma diminuição da receita no ano corrente, mas terá certamente impacto em futuros orçamentos..Assim, mantendo-se esta tendência para a adoção de eventuais medidas que induzem a perdas de receita permanente, estaremos em presença de um claro declínio no processo orçamental, e em breve, sublinhamos, ausência de condições de governabilidade. É preciso que o Governo e os partidos que lhe dão suporte afinem os esclarecimentos junto dos portugueses sobre as consequências de tal atração fatal pela despesa, que a oposição diz ser insignificante. Por exemplo neste recente caso das ex-SCUT, decisão marcadamente populista, cabe ao Governo explicar aos portugueses rapidamente e sem delongas como compensará estas receitas. E como se tudo isto não bastasse o Banco de Portugal vem pelo seu Governador dizer que regressaremos ao défice como consequência das medidas tomadas pelo Governo. De facto, convenhamos, se às despesas subjacentes às propostas da oposição somarmos aquelas que advêm das propostas do Governo, o incremento é substancial. Despesas e Receitas são “elementos” orçamentais siameses..No âmbito do Semestre Nacional que precede o Europeu, a instituição do orçamento,reflete o resultado do processo político e constitui-se formal e materialmente como oinstrumento de excelência que permite a transformação das opções politicamente tomadas pelo Governo, em melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, garantindo uma justa repartição dos recursos públicos e equidade intergeracional. O Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República, e o atual, tem uma exígua margem de manobra para governar, já se sabia, diga-se. O centro de decisão governativa, de facto, está hoje na Assembleia da República. É esta a realidade com que o Governo terá de contar, e se aspira de facto a uma saudável longevidade, tem de encontrar o engenho, e ter a astúcia necessária e adequada para o efeito..Aguentando-se até lá, antevê-se algo de muito preocupante na apresentação da proposta do orçamento que deverá decorrer até ao próximo dez de outubro, para discussão e aprovação, não sendo despiciendo anteciparmos a hipótese, muito provável, de o Governo ver a sua proposta orçamental substantivamente alterada pela Assembleia da República, se tivermos em conta a habitual prodigalidade de propostas de alteração orçamental que acontecem, no âmbito da sua discussão na especialidade..DUAS FACETAS ESSENCIAIS DO ORÇAMENTO – PREVISÃO EAPROVAÇÃO/AUTORIZAÇÃO.Na segunda fase do processo orçamental emergem dois momentos fundamentais daproposta de Lei do Orçamento, a previsão (elaboração) que cabe ao Governo e a(aprovação) autorização que cabe à Assembleia da Républica. Esta última faceta doOrçamento do Estado, a sua autorização, conferida pelo órgão deliberativo politicamente soberano, Assembleia da República ao Governo, titular do poder executivo, para que este possa efetuar as despesas e cobrar as receitas nele inscrito, constitui o traço distintivo do Orçamento do Estado relativamente a qualquer outro orçamento. Nesta fase de aprovação da proposta orçamental que nos termos da lei do enquadramento orçamental tem a duração de cinquenta dias, procede-se no parlamento à sua discussão na generalidade e especialidade..Inicialmente, a proposta de lei é votada na generalidade, com incidência nos princípios,uma vez aprovada, inicia-se a sua discussão na especialidade. Nesta última fase os Mapas Contabilísticos, também conhecidos por Mapas da Lei que integram a Lei do Orçamento de Estado, bem como cada um dos artigos que o compõem, são objeto de votação individualizada. Os grupos parlamentares podem propor novos artigos, alterações aos já existentes ou a eliminação de artigos, bem como novas dotações de despesa ou previsões de receita, ou alterações às mesmas. As propostas apresentadas são igualmente objeto de votação individualizada. Este processo de discussão e votação da proposta orçamental na especialidade é acompanhado, ou pelo menos deveria ser acompanhado, numa fase preliminar pela Direção Geral do Orçamento, responsáveis pela área Tributária e Aduaneira, e outras entidades que informam posteriormente o Governo do impacto orçamental das propostas de alteração formuladas pelos Deputados. Posteriormente após a aprovação final das propostas de alteração, são incorporadas na proposta de lei do Orçamento do Estado..Ora bem, é exatamente nesta faceta do Orçamento, autorização da proposta orçamental por parte da Assembleia da Républica, que reside o cerne da questão, com o qual o atual Governo e os futuros serão amiúde confrontados, e experimentarão novos desafios na sua execução. São mais de duas mil peças legislativas apresentadas pelos Senhores Deputados, visando a alteração da proposta do Orçamento do Estado, muitas vezes conflituantes entre si, um verdadeiro caos no processo legislativo orçamental, com impacto posterior na sua execução..Não obstante o necessário e indispensável pluralismo politico, o dissenso, a divergência,formas de afirmação das democracias modernas, o número excessivo de propostas dealterações orçamentais modificativas, apresentadas por parte dos partidos da oposição,são uma realidade hoje incontornável para qualquer governo, porquanto, vivemos hoje uma fragmentação inusitada do espectro partidário com elevado potencial deconflitualidade por um lado, ou conluio latente por outro, e não raras vezes exposto, que, relembre-se, são parte funcional da comunidade, e lutam ferozmente pela conquista do poder. Uma outra questão que igualmente fragiliza a execução orçamental pelo Governo, é o tendencial aumento da burocracia (orçamental) que lhe está associada, porquanto tem-se vindo a privilegiar a estrutura legislativa extensa com mais de duzentos artigos em detrimento de uma estrutura mais simples, com artigos estritamente necessários, igualmente possível..Os partidos são livres de adotar a postura que bem entenderem, importa, no entanto,sublinhar que a liberdade adquire o seu autêntico sentido quando se exercita ao serviçoda verdade. No atual panorama político nacional, convém ter presente, que é cada vezmais improvável, governos com inequívoca sustentabilidade parlamentar, muito menosde maioria absoluta de um só partido, contexto este instável, nefasto para a democraciarepresentativa, recomendando-se, se nos é permitido, alguma acalmia neste ambientepolítico de enorme stress que hoje existe, e que constitui por si só uma das maioresfragilidades no desenho institucional do país.