Pablo Neruda entre nós
Mesmo aceitando a ideia de que a secção competitiva de Cannes deve saber acolher um máximo de diversidade geográfica e cultural (a diplomacia é também um valor respeitável), há ausências que suscitam, no mínimo, algum desencanto. Exemplo muito concreto: Neruda, filme sobre Pablo Neruda (1904-1973) com que o chileno Pablo Larraín continua a perscrutar as memórias do seu país durante o século XX (lembremos o caso exemplar de Post Mortem, de 2010, evocando os dias finais de Salvador Allende). Tal como o magnífico Fai Bei Sogni, de Marco Bellocchio, não teve honras de seleção oficial, surgindo integrado na Quinzena dos Realizadores.
Por mim, direi que me parece um filme muito superior a qualquer dos que, para já, foram vistos na competição oficial e, mais do que isso, um acontecimento maior na produção internacional de 2016 (não sendo arriscado prever que o vamos encontrar na linha da frente para o Óscar de melhor filme estrangeiro). Seja como for, creio que mesmo os menos entusiastas reconhecerão que se trata de um invulgar desafio narrativo, muito para além das regras do modelo tradicional de biografia (cinematográfica ou televisiva).
Há um mistério quase policial na estrutura do filme que, tanto quanto possível, importa preservar. Digamos, para simplificar, que Neruda (Luis Gnecco) surge retratado através dos seus ideais comunistas, mas de modo algum idealizado, tanto mais que o narrador é um polícia que o persegue (Gael García Bernal), revendo-se no seu alvo como quem descobre uma imagem recalcada de si próprio. O filme de Larraín contraria a ideologia televisiva dominante, segundo a qual a acumulação de "informação" gera um retrato automático e unívoco: contar a história e também compreender como falhámos a história, ou a história nos falhou.