Tailândia, meu amor
Como vimos o drama dos rapazes tailandeses que ficaram presos numa gruta? E, sobretudo, como não vimos? Mais do que nunca, importa reflectir sobre o modo como damos a ver o mundo à nossa volta.
1. Vejo as primeiras imagens dos rapazes tailandeses que, com o seu treinador, foram salvos da gruta de Tham Luang Nang Non, no norte da Tailândia. Parece ser um registo de telemóvel, provavelmente de um dos familiares que, separados por vidros, observam os jovens nas camas de uma enfermaria. Há gestos de reconhecimento e cumplicidade, sorrisos e lágrimas. Um dos rapazes desenha um "V" com os dedos da mão direita, logo a seguir juntando as mãos numa prece.
2. Vivemos num contexto social em que a confluência técnica e simbólica de televisão e Internet alimenta uma ânsia perversa pela proliferação de imagens, sempre mais imagens. E, no entanto, apesar disso (e também através disso), a odisseia vivida na Tailândia gerou muito poucas imagens. Até mesmo este primeiro vídeo dos rapazes, finalmente salvos, surpreende pelo seu imaculado pudor. Para que conste, estas primeiras imagens dos rapazes tailandeses duram 37 segundos.
3. Não pretendo condensar "todas" as linguagens (televisivas, jornalísticas, analíticas) que foram utilizadas para informar sobre o que aconteceu na Tailândia. Aliás, num planeta tão saturado de informações, devo começar por admitir que me podem ter escapado muitas variantes dessas linguagens. Ainda assim, atrevo-me a pensar que o que aconteceu na Tailândia foi gerido com uma contenção em que a crua urgência dos acontecimentos nunca foi confundida com a "necessidade" de produzir imagens para satisfazer a lógica mediática dominante. Dito de outro modo: a operação de salvamento nunca se submeteu à "obrigação" de fornecer imagens do que estava a acontecer, muito menos em favorecer a exploração de directos televisivos mais ou menos especulativos e sensacionalistas.
4. Não vi, não li, não encontrei muitas reflexões jornalísticas que mostrassem algum empenho em fazer eco deste princípio de contenção. O drama durou 18 dias, de 23 de Junho a 10 de Julho, foi infinitamente glosado pelos meios de comunicação de todo o mundo, sem que aqueles que estavam a vivê-lo directamente (famílias, autoridades políticas, equipas de salvamento) se submetessem a um processo simplista de validação mediática. Em boa verdade, o seu recato pode justificar algumas interessantes questões - mediáticas, justamente. Por exemplo: porque é que as treze pessoas presas numa caverna na Tailândia foram transformadas numa "história", enquanto os mais de 200 mortos provocados, no mesmo período, pelas cheias no Japão tiveram um tratamento de "rotina"?
5. Há um equívoco que importa contrariar. Não, não se trata de fazer inventários de cadáveres e, a partir daí, "idealizar" modelos mediáticos. Acontece que a globalização - certamente plural e não poucas vezes contraditória - vive também destes impasses: por um lado, os ecos da Tailândia rasuraram quase tudo o que estava a acontecer ao mesmo tempo; por outro lado, o próprio evento tailandês resistiu a ser tratado como espectáculo mediático.
6. Não tenho, longe disso, qualquer certeza, fechada e definitiva, para definir os modos "correctos" de tratar situações tão extremas. Em todo o caso, quanto mais não seja por defeito profissional, não posso deixar de recordar que, há muito tempo, o cinema reflecte sobre estes problemas deontológicos e éticos - numa palavra, humanos - que, agora, não poucas vezes, parecem atrair alguma indiferença jornalística. Penso, em particular, na herança preciosa da obra-prima de Alain Resnais, Hiroshima, Meu Amor (1959), filme não exactamente sobre a memória da bomba atómica através das imagens, antes apostado em enfrentar a dificuldade de gerar imagens para construir essa memória.
7. As imagens estão lá, é verdade. Mas surgem a partir de uma frase, de uma só vez programática e poética, na voz de veludo de Emmanuelle Riva: "Tu não viste nada em Hiroshima".