O melhor português possível
Se a justificação de modernizar e uniformizar o mais possível a língua portuguesa em todos os países que a utilizam era um argumento válido - mesmo sendo difícil acreditá-lo possível -, a forma que o acordo ortográfico tomou sempre me deixou desconfortável. A razão: a modificação pouco natural de palavras que aqui, onde nasceu a língua, se usavam para facilitar a expressão de quem veio a adotá-la. Foi a reversão do que deve estar na base de um acordo do género - não colhe a argumentação de que ainda escreveríamos farmácia com ph se não acompanhássemos a evolução, porque o que se fez não foi oficializar o que já se usava correntemente mas mudar as regras à partida e esperar que o hábito se lhes seguisse. Por outro lado, já se viu que a justificação tantas vezes repetida de que o acordo evitaria peculiaridades como as ridículas conversões de texto do português de Portugal para o português do Brasil, por exemplo, não encontrou paralelo na realidade. Uma pastelaria continua a não ser uma lanchonete, o encarnado mantém sentido dúbio consoante o lado do Atlântico em que seja usado, tal como as construções frásicas e os tempos verbais mantêm as suas especificidades conforme estejam mais ou menos adocicados.
No entanto, o acordo foi firmado, oficializado e adotado. Portugal comprometeu-se a assumi-lo há quase 30 anos. E já lá vão cinco desde que os miúdos começaram a aprender a escrever com estas regras. Os órgãos oficiais tiveram, por lei, de submeter-se a elas - ainda que muitos, governo incluído, não se deem ao trabalho de as aprender e ainda misturarem grafias mesmo em documentos do Estado. As publicações foram-se uniformizando a partir dessa realidade, exceção feita - e isso sim, deve ser respeitado - àqueles que a rejeitam terminantemente e o assinalam nos seus textos.
Se é verdade pois que muitos, grupo onde me incluo, não engolem com facilidade esta versão da língua empobrecida por decreto, também é surreal que ainda haja quem continue a insistir - contagiado ou mesmo animado pelo que é prática corrente na cartilha do atual ministro da Educação - na ideia de que o que é preciso é desfazer tudo, ou quase. A Academia de Ciências de Lisboa chama-lhe "aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico de 1990", justificando-o com a necessidade de "pôr fim à instabilidade ortográfica" decorrente das várias grafias permitidas para certos termos. E defende que, sendo utópica a tentativa de uniformização ortográfica nos diversos países em que a língua portuguesa é a oficial, é preciso considerar "a tradição lexicográfica de longa existência" e reequacionar "alguns pontos" do acordo. Leia-se: fazer regressar consoantes mudas, circunflexos, hífenes... E personalidades como Manuel Alegre apoiam-no sem reservas, prometendo até fazer guerra ao governo caso as coisas não andem no sentido desejado - para trás.
Não entendem que já passámos essa fase. E se uma larga fatia dos portugueses (sobretudo os mais velhos) ignora que a terceira pessoa do singular do verbo parar, no presente do indicativo, passou a ser uma palavra homógrafa da preposição "para", a outra fatia (onde se incluem crianças, adolescentes e jovens adultos) já nem passa pela cabeça acentuá-la.
O momento de discutir, exigir, tentar alterar e fazer valer argumentos e fúrias foi-se. Há demasiado tempo para fazer sentido voltar atrás. Quem quer devolver algum valor à língua, melhor fará em focar-se e esforçar-se por ensiná-la como hoje ela é.