Stanislavski e bananas Chiquita

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Ainda não foi desta. As filmagens da segunda adaptação de The Stand (agora em exibição na HBO Portugal) terminaram a 12 de Março de 2020, antes de uma sucessão de restrições e lockdowns limitarem ou cancelarem a produção televisiva durante meses. A pontaria cronológica parecia um sinal promissor; mais de 25 anos depois da primeira tentativa, a nova oportunidade para adaptar ao pequeno ecrã a obra-prima de Stephen King iria surgir numa realidade pandemicamente reajustada à premissa do livro.

Essa nova oportunidade era bem-vinda. O The Stand de 1994 foi má televisão à medida da época, um compêndio de esporádicas boas ideias e de todos os defeitos-padrão do entretenimento comercial dos anos de 1990, com efeitos especiais risíveis e uma ambiciosa colecção de gangas, boinas e coletes de cabedal a fazer as vezes de guarda-roupa. Mas a nova versão não se limita a readaptar o livro; também se dedica infatigavelmente a actualizar os defeitos da primeira adaptação à contemporaneidade televisiva, em que até a ficção de polpa tem ambições e a fórmula vulgarizada do produto de prestígio se tornou tão reconhecível e fácil de reproduzir, que muitas novas ficções se comportam como se fosse uma ofensa desrespeitar alguma regra. Esta igualização de possibilidades foi gerando uma paisagem fictícia tão pouco diferenciada como o "centro" turístico de qualquer capital europeia, em que praticamente todas as séries adoptam a mesma estética de "taipas-concept", ementas bilingues e bicicletas estacionadas à porta.

Apesar de tudo, não é a familiar palete cinzenta e azulada que se torna o principal problema, mas outro mecanismo predilecto da era do prestígio: a desarrumação cronológica. As primeiras trezentas páginas do livro de King (talvez as melhores da sua carreira) são um milagre de propulsão narrativa, com uma série de capítulos sobre as personagens principais a alternarem com vinhetas ominosas sobre o princípio do fim, antes de ambas afunilarem para o colapso completo de uma sociedade funcional. Cada sobrevivente relevante é apresentado com espaço suficiente para ganhar alguma autonomia imaginativa antes de ser confrontado com o apocalipse. E esse apocalipse, quando chega, é um triunfo de obediência às melhores convenções da ficção pós-apocalíptica, aproveita o desastre como uma oportunidade de regeneração paisagística, e as consequentes oportunidades líricas para mostrar a natureza a reclamar espaço à civilização.

Uma das duas escolhas básicas que torna a actual versão televisiva desastrosa enquanto adaptação é uma fundamental incompreensão sobre o que torna empolgante a história original: precisamente a cronologia linear. Ao invés, a opção é retalhar essa cronologia em dezenas de prolepses e analepses, o que subtrai toda a urgência ao processo de colapso e impede qualquer investimento de curiosidade ou tensão no que vai acontecendo às personagens.

O que lhes acontece, já agora, é a gravitação gradual para um de dois pólos aglutinadores pós-pandemia, cada um guiado por sonhos temáticos. Boulder, no Colorado, tutelada por uma anciã com dotes proféticos, promete sanidade e civilização, e atrai grávidas, guitarristas e professores de Sociologia; Las Vegas, dominada por uma figura vagamente demoníaca, atrai uma colecção heterogénea de cadastrados, pirómanos e ninfomaníacas.

A divisão é simplista, porque a história é simples, e fanaticamente desinteressada em definir tonalidades de cinzento. Há, no entanto, uma dessas simplicidades que parece ter escapado despercebida à adaptação. Randall Flagg, o vilão do livro, é uma figura demoníaca crucialmente diferente do tipo de figura demoníaca que tanto a escrita como o casting querem criar: o génio satânico encantador, omnicompetente, capaz de proezas sucessivas de sedução e manipulação. Este estilo de caracterização do Mal é também bastante familiar: assenta na intensificação cumulativa, em que os portentos se vão amontoando, como maquilhagem aplicada por uma criança. E a ameaça é quase sempre indissociável de uma ameaçadora inteligência.

O Randall Flagg do romance é uma figura tremendamente eficaz, em parte, por ser estética, intelectual e até politicamente surpreendente: por um lado pode ser lido como uma transformação do sonho hippie num pesadelo: com os seus cabelos compridos, o seu casaco de ganga, a sua retórica revolucionária e o seu apetite pelo caos, é quase a encarnação de uma fantasia de subúrbio em 1968. Mas é também, e isto é algo que a série não sabe ou não quer representar, uma figura essencialmente estúpida e absurda.

Muitas das reviravoltas de uma narrativa essencialmente coordenada por actos de fé e golpes de magia acabam por dever-se à cegueira ou incompetência do vilão. King nunca deixa grandes dúvidas sobre isto. "Estúpido", aliás, é um adjectivo usado por várias personagens para caracterizar vários aspectos de Flagg ao longo do livro ("olhos estúpidos", "rosto estúpido", etc.). A reacção de um dos habitantes de Boulder, ao vê-lo pela primeira vez (depois de páginas e páginas onde a sua presença distante é análoga à de um papão), é desatar a rir. "Tínhamos tanto medo de ti... e afinal és só isto?" Essa personagem, saliente-se, leva pouco depois cinco tiros pelo atrevimento: quatro no peito e um que lhe desfaz a cara. Se o livro tem um argumento intuitivo sobre o Mal, é que a estupidez, a piroseira e o ridículo não são incompatíveis com a violência caótica e com a ameaça genuína.

A série é demasiado fiel a outra concepção do Mal para besuntar Flagg com todo o azeite que ele merece, e prefere dotá-lo com bom aspecto, barba hipster e humor cultural. A dada altura, uma espia de Boulder enviada para Las Vegas é detectada por Flagg, que a chama à sua presença. A espia leva uma arma escondida na manga para o assassinar. Na série consegue atingi-lo, cravando-lhe uma tesoura no pescoço; Flagg cai ao chão e fica a esvair-se em sangue, numa aparente agonia, antes de se levantar com um sorriso triunfante, e confessar que aprendeu a representar os estertores da morte com "o meu ex-amante, Stanislavski". No livro, a facada nunca chega a ser dada; a arma transforma-se numa banana na mão da potencial assassina, que fica a olhar desoladamente para o autocolante com as letras "CHIQUITA", enquanto Flagg se ri, deliciado com o patético truque de ilusionismo que acabou de fazer. É essa, de resto, a maior diferença de realismo e potencial de inquietação entre a série e o material de origem: o livro mostra um Mal naturalista que se delicia estupidamente com as coisas que faz, e não um Mal ideológico que se delicia malignamente com aquilo que é.


Escreve de acordo com a antiga ortografia

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