Os extremos de Portugal

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Portugal é um país de extremos. Vejo agora mesmo da minha janela, por cima da mesa onde apoio o computador para escrever este artigo, um homem a trabalhar, sozinho na sua horta, rodeado pela natureza e pelo silêncio. Quando me desloco para outro ponto do apartamento, a paisagem muda, vejo uma centena de pessoas a caminhar pelas ruas dominadas pelo trânsito e indiferentes ao barulho incessante da grande cidade.

O sino da igreja dá 11 badaladas para marcar a hora e abafa uma buzina insistente para abrir caminho. A mistura de sons semelhantes com objetivos diferentes causa uma sensação que me leva a pensar na minha cruzada por um país dividido, deserto no sul, densamente povoado no Porto e em Lisboa. Sorrio ao comparar a normalidade no olhar dos lisboetas, saturados de estrangeiros em todas as estações do ano, com o desejo de aproximação e contacto com os habitantes de um Algarve quase inóspito antes do verão.

Na correria da capital não aprecio devidamente uma castanha enquanto converso com o surfista de ondas gigantes Hugo Vau, que verifica o seu telemóvel. Falta tempo e cerveja gelada para realçar o paladar. A mesma cerveja que em Sagres é saboreada com calma e sem vergonha às dez da manhã pelos surfistas que foram ao mar ainda de madrugada. Numa cidade que em certas zonas lembra o México, com as suas cores e catos, eles partilham sem pressa uma mesa em que tomam o pequeno-almoço e ainda leem sem pressa o jornal de domingo.

Durante muito tempo ando pela encosta rochosa das praias de Albufeira sem avistar ninguém. Finalmente encontro um pescador. Puxo assunto e ele começa a explicar os termos náuticos Barlavento e Sotavento, aplicados na designação das regiões algarvias. A cidade está na fronteira da zona ocidental com a oriental e ele ironiza ao apontar em direção ao vizinho Sotavento, acentuando o só da palavra ao falar da falta de gente em Loulé, Faro, Olhão, Tavira e Vila Real de Santo António.

As laranjas nas árvores, ao lado do azul quase roxo das flores dos jacarandás, indicam a chegada de uma nova estação e de gente ao Algarve. Mas ainda é cedo para tanto. Pego um barco até a ilha do Farol e subo a uma das construções mais altas, um dos principais pontos turísticos da região. Superados os 220 degraus de cimento mais os 12 de ferro, vejo uma imensidão de areia quase livre de pegadas. O Farol de Santa Maria dispara quatro flashes a cada 17 segundos, serve de norte para os navios e é ponto de referência para os 20 habitantes da ilha, incluindo os quatro marinheiros. Impossível não comparar o silêncio e a solidão a 42 metros de altura com a procura de um disputado lugar nos barulhentos terraços de Lisboa ou do Porto durante o pôr do Sol.

Ao ver os ecrãs gigantes nos centros de cada pequena cidade e as bandeirolas das festas dos Santos Populares, entendo que são factos que unem Portugal de lés a lés e causam o milagre da multiplicação da população. Na devoção à equipa nacional a jogar o Mundial na Rússia e à comemoração quase mística dos mais religiosos, o país encontra-se na multidão. É a verdadeira summit fora da web, na qual toda a gente vai à rua e quem foi afastado do seu bairro pela especulação imobiliária volta para ver as marchas e sonhar com o retorno definitivo, cada vez mais difícil.

Em celebrações populares impera a ideia de confraternização. Enquanto os presidentes das câmaras do Porto e de Vila Nova de Gaia se cumprimentam no meio da Ponte D. Luís I, divido uma aguardente com um novo amigo português na Rua das Flores lotada. Brindamos ao São João no meio do cheiro das sardinhas em brasa e da fumaça de um balão que queima antes de ganhar o céu, já repleto daqueles com mais sorte.

Um pouco mais abaixo, a Ribeira lotada canta A Minha Casinha e um grupo abraça-se no fim, da música e do espetáculo de pirotecnia no rio Douro, como se fosse uma imensa família. Os abraços desdobram-se numa corrente até que todos ao redor sejam incluídos, inclusive os mais solitários. Em gestos como este, o país de extremos encontra a sua unidade.

Correspondente do jornal O Globo

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