O fator Trump e a política externa dos EUA
No primeiro ano da presidência de Donald Trump, os danos causados pela política externa da sua administração ficaram bem aquém do que se temia.
Apesar da sua retórica trovejante e dos tweets a apelidar o ditador norte-coreano Kim Jong-un de "homenzinho-foguete", o novo presidente dos EUA não iniciou nenhuma guerra, seja na península coreana ou no mar do Sul da China. Também não houve conflito em relação a Taiwan no seguimento de Trump ter questionado a política de "uma só China" adotada desde há muito pela América.
Na verdade, em vez de entrar em conflito com a China, Trump parece ter forjado um relacionamento pessoal próximo com o presidente chinês Xi Jinping. Os líderes chineses nem queriam acreditar na sua sorte quando um dos primeiros atos oficiais de Trump foi retirar os Estados Unidos da Parceria Transpacífico (TPP), que teria excluído a China e consolidado as regras comerciais ocidentais na região Ásia-Pacífico. Era como se Trump quisesse tornar a China grande novamente e não a América.
Além disso, Trump não iniciou uma guerra comercial ao impor taxas aduaneiras elevadas às importações dos principais parceiros comerciais dos EUA, como a China, a Alemanha e o Japão. Apesar da sua recusa em recertificar o acordo nuclear com o Irão, ele mantém-se em vigor. E as consequências a longo prazo da sua decisão unilateral de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel ainda estão por determinar.
A esperança de Trump de cooperar mais estreitamente com a Rússia à custa dos aliados dos EUA também não se realizou, e a posição oficial dos EUA no conflito ucraniano não mudou. Claro que isso se deve em grande parte à decisão do presidente russo, Vladimir Putin, de interferir nas eleições presidenciais de 2016 nos EUA, o que impediu Trump de reorientar a política americana em relação à Rússia sem provocar uma tempestade política interna.
Da mesma forma, apesar de ter sido considerada "obsoleta" por Trump, na verdade, a NATO ganhou força e legitimidade durante o ano passado, devido ao fortalecimento militar da Rússia e à continuidade da guerra no Leste da Ucrânia. Com certeza, os europeus terão de zelar pela sua própria defesa mais do que no passado. Mas isso não teria sido diferente sob uma presidência de Hillary Clinton (embora a mensagem tivesse sido formulada em termos mais amigáveis).
Tudo isto dito, os "adultos em uniforme" da Casa Branca - o secretário da Defesa James Mattis, o conselheiro de Segurança Nacional H.R. McMaster e o chefe de gabinete John Kelly - garantiram a continuidade da política externa dos EUA. E o mesmo parece ser verdade para a política económica e comercial.
Isso significa que o mundo pode dormir descansado? Claro que não. Ainda há um grande ponto de interrogação sobre a política externa dos EUA, que tem que ver com o próprio Trump. Não está completamente claro o que o presidente quer, o que ele realmente sabe e o que os seus conselheiros lhe dizem ou não. Uma política externa coerente pode não resistir às mudanças de humor de Trump e às suas decisões espontâneas.
Ainda pior, a contração do Departamento de Estado dos EUA debilitou a base institucional para implementar a política externa oficial a um grau quase crítico. E a Estratégia de Segurança Nacional, recentemente publicada pela Casa Branca, não é mais animadora. Rompendo com a posição oficial dos Estados Unidos desde 11 de setembro de 2001, os EUA consideram atualmente que a sua rivalidade de poder global com a China e a Rússia é a principal ameaça para a segurança nacional e a paz mundial e não os atos de terrorismo cometidos por atores não estatais.
Assim, olhando retrospetivamente para 2017, a impressão que fica é que embora a política externa norte-americana tenha permanecido em grande parte intacta, tornou-se também completamente imprevisível. Nesse sentido, 2018 parece ser um ano de riscos substancialmente acrescidos, especialmente devido às tensões no golfo Pérsico e no Líbano, a guerra na Síria, a luta hegemónica entre a Arábia Saudita e o Irão e a provocação nuclear na península coreana.
Na península coreana e no golfo Pérsico o objetivo central deve ser impedir o armamento nuclear das ditaduras que ameaçam a estabilidade regional e o equilíbrio de poder prevalecente. Na situação atual, o risco de um confronto militar com a Coreia do Norte ou o Irão não pode ser descartado.
No caso da Coreia do Norte, que está a trabalhar a todo o gás num míssil balístico intercontinental capaz de chegar ao continente americano, esse conflito poderia até implicar o uso de armas nucleares. Nada nesta situação inspira otimismo, especialmente agora que os EUA são liderados por um presidente em quem poucos podem confiar e cujas políticas têm de ser adivinhadas a partir da confusão dos seus tweets.
De facto, o fator Trump poderá ser a principal fonte de incerteza na política internacional neste ano. Os EUA ainda são a principal potência mundial e desempenham um papel indispensável na preservação das normas globais. Se as políticas dos Estados Unidos são difíceis de prever, e se o comportamento de Trump mina a confiança no governo dos EUA, a ordem internacional ficará vulnerável a uma profunda turbulência.
Com a aproximação das eleições intercalares nos EUA em novembro, será importante considerar como os acontecimentos políticos internos podem moldar a política externa do país. Se os republicanos perderem as suas maiorias numa ou em ambas as câmaras do Congresso, e se Robert Mueller, o procurador especial na investigação da Rússia, apresentar as suas descobertas ao mesmo tempo, então Trump sentirá uma erosão rápida do seu poder.
Assim, a questão crucial para 2018 é o que Trump fará se se sentir ameaçado internamente, ao mesmo tempo que se desencadeia uma crise de política externa. Será que os "adultos presentes" ainda conseguirão gerir a situação? Não é preciso ser um profeta da desgraça para olhar para os próximos meses com uma boa dose de ceticismo e preocupação.
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e vice-chanceler de 1998 a 2005. Foi líder do Partido Verde Alemão durante quase 20 anos