As quatro cimeiras
A dupla cimeira transatlântica marcou grande parte da semana mediática. Trump recebeu Macron num contínuo coreográfico que fez as delícias do presidente francês nos três dias da visita. Nela, Macron atingiu o objetivo da sua missão: criar a ideia de que na Europa não há nenhum líder com tanto à-vontade com Trump, com tanta confiança para dizer o que pensa no Congresso, e com tanta popularidade para, sempre que lhe apetece, furar o protocolo. Mas uma coisa é viver a política apenas na dimensão do simbólico, outra é trazer resultados para casa. E a verdade é que, no final dos três dias, Macron levou pouco mais do que uns abraços de Trump para o Eliseu.
Dois dias depois, Angela Merkel chegou à Casa Branca. Comparar as duas visitas é como olhar para a água e para o vinho. Se uma durou três dias, a outra não ultrapassou as três horas. O palacianismo de Macron foi o oposto da sobriedade de Merkel, que acabou o dia numa hamburgueria em Georgetown. E quando analisamos a conferência de imprensa conjunta, vemos a clássica soberba de Trump sobre uma chanceler que só a muito custo lhe estende a mão. No comércio e nas isenções alfandegárias, Merkel trouxe para Berlim a continuação da incógnita; sobre o acordo com o Irão, nenhuma inversão da Casa Branca; e em relação ao esforço de investimento na Defesa, ainda conseguiu ouvir do presidente americano que estava a fazer muito pouco. No atual equilíbrio de relações com Washington, pelo menos no plano das aparências, Paris está à frente, Londres faz pela vida e Berlim é obrigada a um frete estratégico sem arte e engenho. À espreita, a Polónia. No entanto, no essencial, as clivagens entre o globalismo de Macron e Merkel continuam a não colher adesão na orientação de Trump e, no final do dia, é isso que conta na política internacional.
Até porque o essencial da semana não se passou em Washington, como ficou patente na conferência de imprensa entre Merkel e Trump, mais centrada na cimeira das Coreias desse dia do que nos temas da reunião da Casa Branca. Mas o encontro coreano só foi histórico por ter sido a primeira vez que um líder da Coreia do Norte se deslocou ao vizinho do sul. A singularidade termina aqui. Primeiro, porque não foi a primeira vez que uma cimeira bilateral com vista a uma paz e desnuclearização duradoura se realizou. Em 2000 e em 2007, os líderes das duas Coreias reuniram-se para forjar esse entendimento, nas duas ocasiões viajando o presidente sul-coreano até Pyongyang. Segundo, tendo em conta o sucesso das anteriores, valeria a pena esperar pelo resultado dos bons ofícios e dos sorrisos do camarada Kim, antes de decretar a cimeira como um marco na história. Basta lembrar que foi precisamente entre os encontros de 2000 e 2007 que a Coreia do Norte realizou o primeiro teste nuclear (2006) e que desde então o Conselho de Segurança aprovou nove rondas de sanções sem que isso tenha travado ou beliscado o aprumo tecnológico do aparelho nuclear em Pyongyang.
Aliás, é importante dizer que Kim Jong-un atinge a aceitação internacional com estatuto para se sentar à mesa (o seu grande objetivo estratégico) depois de, internamente, ter eliminado todos os rivais, consolidado o poder no exigente círculo militar e ter completado de forma rápida uma credibilidade nuclear suficiente para influenciar as decisões de terceiros. Além de tudo isto, dois pontos importantes resultam do comunicado intercoreano.
Por um lado, um compromisso com a desnuclearização da península, o que significa muito mais do que a Coreia do Norte abdicar das suas conquistas militares. Pode implicar o fim da tipologia de auxílio militar antinuclear dos EUA à Coreia do Sul, a conclusão dos exercícios que ambos regularmente mantêm ou, em caso extremo, até a retirada das 30 mil tropas americanas ali estacionadas. Ou seja, Pyongyang - e Pequim na retaguarda - pode, em último caso, trocar o princípio de desnuclearização norte-coreana (nunca chinesa) pelo princípio da desamericanização da Ásia-Pacífico. Aqui chegámos ao segundo ponto do comunicado: o estabelecimento de um tratado de paz que substitua o armistício de 1953. Ora, com essa desamericanização da Ásia-Pacífico, quem garantiria a sustentabilidade desse acordo, o qual, em último caso, poderá levar à reunificação da península? A China. Dessa forma, senhora da geopolítica regional, teria outra desenvoltura para se impor nas várias disputas de soberania marítima e terrestre que mantém com vários Estados na região e ainda outra capacidade para levar a cabo com sucesso a One Belt Initiative, a mais bem desenhada grande estratégia internacional em curso por uma grande potência neste início de século.
Aqui chegamos à quarta cimeira importante desta semana, totalmente ausente do radar mediático ocidental: a que reuniu na cidade chinesa de Wuhan o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o presidente da China, Xi Jinping. Além de serem dois Estados com capacidade nuclear, disputas fronteiriças ainda suficientemente acesas para não sossegar ninguém, os dois maiores importadores de energia do mundo, e terem interesses estratégicos concorrentes no Índico, Pequim dá aqui um importante passo na sua ativa diplomacia apaziguadora de forma a conquistar garantias de tranquilidade à sua Nova Rota da Seda. Quando parte desta estratégia passa por um eixo de infraestruturas estratégicas no Índico, onde Nova Deli tem uma preponderância histórica (Nepal, Maldivas, Bangladesh e Sri Lanka), assegurar que a passada chinesa (económica, política e militar) se faz com o mínimo de resistência é vital ao seu sucesso. E parte dele passa também pela Europa.
Podemos continuar a olhar apenas as sessões contínuas do casal Macron em Washington ou, então, ver o mundo para lá da sua espuma.