A relação transe-atlântica
Depois das saídas dos generais McMaster e Kelly, bateu com a porta do general Mattis. Durante uma parte substancial destes dois anos da presidência Trump, os três dirigiram em simultâneo o Conselho de Segurança Nacional, o staff da Casa Branca e o Pentágono, numa evidente tentativa do presidente em colher autoridade política ao pedigree da instituição militar.
Esse tempo terminou. Nas últimas semanas, outros grandes chefes militares assumiram o desalinhamento definitivo com a Casa Branca, tecendo críticas ao anúncio twitteiro de retirada das tropas da Síria, do Afeganistão e à partidarização feita por Trump na visita às tropas no Iraque. Stan McChrystal chamou-lhe "mentiroso" e "imoral", Barry McCaffrey apelidou-o de "embaraçoso" e William McRaven, o almirante que supervisionou a captura de Bin Laden, afirmou que o presidente "ameaça a Constituição".
À entrada para a segunda parte do mandato, parece para já claro que dificilmente o recrutamento para altos cargos da administração voltará a fazer-se na instituição militar, o que limita as opções de qualidade e oficializa uma frente anti-Trump com peso público numa altura em que toma posse uma Câmara dos Representantes que não dará tréguas às imoralidades presidenciais.
Mas o ponto mais importante desta rutura estrutural não está nas dissonâncias pessoais ou nas avaliações negativas a decisões voluntaristas, mas sim no que James Mattis escreveu na sua recente carta de renúncia: o total desalinhamento com a falta de respeito do presidente por aliados, alianças e parcerias, sistema que tem consolidado a primazia americana na ordem internacional e assegurado a sua segurança nacional. A ordem internacional é uma daquelas expressões em que normalmente não se perde muito tempo a pensar nela até ao seu desaparecimento. Mattis pôs, atempadamente, o dedo na ferida num momento em que a sua saída voltou a soar campainhas nas capitais da NATO: demitiu-se o "último adulto na sala".
É por isto que estamos num momento definidor do rumo da administração Trump e em particular da relação com a Europa: ou Trump continua a promover uma divisão agressiva para reinar, ou uma espécie de diplomacia americana paralela consegue fazer a necessária gestão de danos para que o desalinhamento que levou à demissão de Mattis não se torne uma rutura mais profunda na decana rede de alianças permanentes dos EUA.
Este ponto é absolutamente crucial para todos os europeus que assentam a sua política externa no equilíbrio convergente entre o interesse europeu e o transatlântico, seja no quadro das garantias de segurança, nos fluxos comerciais ou na influência política da sua diáspora. Portugal é, no horizonte do Brexit, um dos protagonistas da valorização (ou não) desse quadro permanente que vem sustentando a sua democracia: europeu, transatlântico e ocidental. Neste sentido, à medida que vão ocorrendo novas e inusitadas ruturas transatlânticas promovidas por Trump, Lisboa está na linha da frente dos seus danos colaterais.
Muita gente em Washington vai dizendo para estarmos mais atentos à "substância" do que ao Twitter do presidente. Não discordo. Mas as palavras em política contam e vindas do presidente americano ainda mais. Sobretudo dirigidas a aliados. Em outubro, Trump disse que "ninguém ameaçava mais os EUA do que a União Europeia". Não há memória de alguma vez termos chegado a este ponto, que além de grotesco é totalmente falso.
Sobre a NATO, foram vários os sinais de descomprometimento, manipulando a sua natureza, desprezando o esforço de investimento feito por muitos aliados europeus e reduzindo a pó o seu desígnio passado e futuro: um pilar de sucesso estrutural na segurança nacional dos americanos. Sondagem recente da YouGov diz-nos que nos últimos dois anos a vontade dos republicanos pela saída da NATO subiu de 17% para 38%, igual valor entre os que querem manter os EUA dentro. Esta variação é particularmente preocupante num partido que tem no seu código genético do pós-Guerra a defesa das alianças permanentes, do seu alargamento e da democracia. Ou seja, depois de capturar eleitoralmente o GOP, Trump está a mudá-lo a uma velocidade vertiginosa.
A poucos meses do 70.º aniversário da NATO e do 30.º da queda do Muro de Berlim, serão esses os dois momentos-chave na definição futura da relação transatlântica. Até lá, não será surpreendente ouvir Trump celebrar o crescimento dos nacionalistas nas europeias de maio, ser dúbio sobre a previsível agressividade russa em ano eleitoral na Ucrânia, celebrar medidas de Orbán, Salvini (e Bolsonaro), valorizar uma nova vitória dos nacionalistas nas legislativas polacas e, na esteira do que já disse Putin, criticar uma inversão do Brexit, feita ou não por referendo. Vamos ter de nos habituar a ter menos EUA na Europa e, no pouco que tivermos, a ser um fator aberto de divisão, confrontação e deslaçamento comunitário. Tudo contrário ao interesse português.
Porém, os EUA, apesar do tempo atípico, não deixam de ser uma democracia institucionalizada e madura, com mecanismos para lidar com um Trump e seguir em frente. E se tivermos em conta as nuances da política externa americana no pós-Guerra, entre excessos interventivos e alguma retração, não custa explorar todos os canais de diplomacia paralela que garantam um pós-Trump menos danoso às alianças e à consolidação das democracias liberais. O fatalismo é a antítese das democracias.