Odoricos digitais

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Ao longo de séculos, a fulgurante criatividade de escritores brasileiros gerou Sassá Mutema, Florindo Abelha, Coronel Ramiro Bastos, Sinhô Badaró, Coronel Ponciano e Odorico Paraguaçu, entre muitos outros políticos grotescos.  

À internet, muito mais imediata do que a literatura, bastaram meia dúzia de anos para gerar mais ou menos a mesma quantidade de políticos grotescos, só que em carne e osso.

Uma parte deles reuniu-se na semana passada, numa só sala, para uma sessão do Conselho de Ética – sim, de Ética – da Câmara dos Deputados.

O tema do encontro era o julgamento do deputado André Janones, acusado de “rachadinha”, a prática de desviar salários dos funcionários do gabinete para o próprio bolso celebrizada pelo senador Flávio Bolsonaro e família.
Janones, mesmo sem nunca ter guiado um camião, foi o porta voz de uma greve de camionistas em 2018 que o alçou a deputado. Já eleito, fez uma live, em 2020, sobre o auxílio à população na pandemia num tom de locutor de futebol e com 3,3 milhões de views que o alçou, desta vez, a pré-candidato presidencial em 2022.

Como Janones é de esquerda, de centro ou de direita, dependendo do valor, retirou a candidatura para apoiar Lula e inaugurar o que se designou de “janonismo cultural”, a reação inescrupulosa do campo lulista à falta de escrúpulos do campo bolsonarista nas redes.

Já uma estrela, foi apanhado em 2023 numa gravação a pedir “rachadinha” aos funcionários mas acabou, até ver, absolvido no tal julgamento, ao qual compareceu a bancada bolsonarista em peso para o provocar e insultar.

O mais exacerbado dos bolsonaristas, Nikolas Ferreira, conseguiu tirar Janones do sério e iniciar um momento de “agarra-me senão eu mato-o” e “vamos lá pra fora!” que se estendeu, de facto, aos corredores da Câmara, tudo devidamente filmado não só pelas TVs como também pelos deputados a fim de editarem vídeos para as redes.

Nikolas é rival antigo (no tempo da internet isso significa dois anos, por aí), de Janones. Além de ambos serem fenómenos eleitorais de Minas Gerais, o segundo editou vídeos fake do primeiro a acusá-lo de homossexualidade, no ponto mais baixo do “janonismo cultural”.

Nikolas é aquele que discursou em plenário de peruca para atacar os parlamentares transexuais eleitos e, ainda em campanha, sugeriu trocar o nome de um posto de saúde em homenagem a Marielle Franco, “uma abortista”, pelo de Brilhante Ustra, notório torturador da ditadura militar.

Aos gritos, a ver o duelo de pesos pluma entre Janones e Nikolas estavam, com o seu tradicional chapéu de cowboy, Zé Trovão, outro deputado nascido de greves de camionistas, ex-viciado em cocaína, ex-presidiário, acusado de violência doméstica pela ex-noiva e foragido da polícia na Cidade do México depois de apontado como organizador de atos antidemocráticos pró-Bolsonaro.

E Pablo Marçal, “o coach picareta (aldrabão)” que foi notícia em 2022 por levar um grupo de coachees a escalar uma montanha “para vencer o medo” que só não acabou em tragédia graças ao resgate dos bombeiros, e, no ano seguinte, por organizar uma maratona que matou um participante, “sujeito a esforço extremo”, por achar que iria correr 21 e não 42 km.

Na era em que vivemos, em vez de estar preso, Marçal “está político” – e até soma 10% nas sondagens para a corrida à prefeitura de São Paulo. Na era em que vivemos, Odorico Paraguaçu seria um político sério.

Jornalista, correspondente em São Paulo

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