O Tratado de Salvaterra de Magos e a Independência de Portugal
Apesar da grande insatisfação reinante no país por causa da progressiva degradação da situação política, económica e social do reinado fernandino, foi a assinatura do contrato de casamento de Salvaterra de Magos, também conhecido como Tratado de Salvaterra de Magos, em 2 de Abril de 1383, que convenceu os portugueses de que a independência de Portugal estava de facto em risco.
Do extenso clausulado que assegurava o casamento da infanta herdeira D. Beatriz com o rei D. João I de Castela, pelo menos três delas angustiavam aqueles que eram contrários à fusão das duas coroas:
1 - O rei de Castela seria rei de Portugal, depois da morte da infanta D. Beatriz, ficando extinta a sucessão legítima da coroa portuguesa.
2 - O rei Castela chamar-se-ia rei de Castela e de Portugal, depois da morte de D. Fernando, desde que a linha directa de sucessão portuguesa estivesse extinta.
3 - Falecendo o rei português e a infanta D. Beatriz, sem descendentes legítimos, os reinos de Portugal ficariam para o rei de Castela.
É claro que havia cláusulas a admitir que o adoentado rei português também pudesse suceder ao trono castelhano, mas eram remotas e praticamente impossíveis de serem concretizadas.
Face aos antecedentes políticos do reinado fernandino, nenhuma das razões conhecidas, incluindo as minhas, me satisfazem totalmente para justificar a celebração deste incompreensível contrato. Efectivamente, o arrependido rei D. Fernando encontrava-se doente, mas estava consciente dos erros praticados, daí ter afirmado quando recebeu os sacramentos: "Todo esso creo come fiell christaão, e creo mais que elle me deu estes rregnos pera os manteer em dereito e justiça, e eu por meus pecados o fiz de tall guisa que lhe darei d"elles mui maao conto" (Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1975, p. 592).
Embora soubessem que o tratado defendia fundamentalmente os interesses da rainha D. Leonor, da sua poderosa clientela, dos galegos e castelhanos refugiados em Portugal, e do rei de Castela, o certo é que a fina flor da nobreza portuguesa, incluindo D. João, Mestre de Avis, e Nuno Álvares Pereira, o influente clero e mais de sessenta e cinco concelhos juraram a seu favor, quiçá por pressão ou apenas por obediência devida ao monarca.
Após a sua morte, ocorrida a 22 de Outubro de 1383, assumida a tão sonhada regência, se a rainha D. Leonor procura consolidar o poder, também se apressam a movimentar as forças oponentes em Portugal e Castela.
A nobreza estava dividida: uns protegiam-se aproximando-se ainda mais da rainha, outros procuravam descobrir a melhor maneira de afastar o conde Andeiro e seus partidários da órbita do poder, terceiros equacionavam as vantagens que poderiam obter apoiando as pretensões do monarca castelhano ao trono português, e ainda outros viviam esperançados no regresso dos refugiados em Castela, não só do Infante D. Dinis mas, principalmente, do Infante D. João, amado pelo povo e pelos fidalgos tanto como o próprio rei, segundo Fernão Lopes.
Curiosamente, D. João, Mestre de Avis, não era visto como alternativa para resolver os problemas que afligiam Portugal, pois nem sequer estava mencionado no testamento real.
Predominando a intranquilidade e ansiedade, perante a iminência da entrada do rei castelhano em Portugal, os burgueses antecipam-se e tomam a iniciativa procurando tirar partido da situação.
Entre outras medidas, propõem à rainha uma profunda remodelação do seu Conselho para o bom regimento e defesa do reino:
1 - Que tivesse no seu Conselho alguns prelados, naturais do reino, e não galegos e castelhanos, e dois homens-bons, cidadãos e entendidos, de cada uma das comarcas de Entre-Tejo-e-Odiana, Estremadura, Beira, Trás-os-Montes, Entre-Douro-e-Minho, e Algarve.
2 - Que estes e seus Conselheiros tivessem o regimento do reino.
3 - Que ela estivesse um ou dois dias por semana com eles para lhe dizerem o que tinham feito e acordado nos outros dias, livrando com eles todos os feitos e demandas do reino.
A inteligente rainha, revelando grande perspicácia e diplomacia, assegura-lhes que cumprirá as sugestões apresentadas, mesmo inferindo que, se as aceitasse, daria aos proponentes não só o predomínio na governação como anularia o peso dos anteriores conselheiros e reduziria à insignificância os seus poderes.
É irrelevante saber se cumpriu ou não com a sua palavra porque, doravante, os acontecimentos vão precipitar-se e, em resposta aos pregões, surgem contestações em várias localidades.
Quebrando os protocolos e sem subterfúgios, D. João I de Castela e D. Beatriz escrevem directamente à rainha D. Leonor e aos alcaides portugueses convidando-os a tomar voz por D. Beatriz.
Em ambiente carregado de medo, até os nobres sentiam renitência em fazê-lo, apesar de terem jurado cumprir o tratado. Uns cumprem imediatamente as ordens, outros consultam D. Leonor e ela manda que tomem voz pela sua filha.
Assim, em resposta ao arraial apregoado em Lisboa, os lisboetas diziam que agora se vendia Portugal que tanto custara a ganhar aos mouros. Henrique Manuel de Vilhena, conde de Seia e senhor de Sintra, bem acompanhado de cavaleiros e escudeiros, manda gritar o arraial por D. Beatriz à porta da Sé, mas não tem coragem para prosseguir por ter sido avisado do alvoroço que se fazia sentir na Rua Nova.
Em Santarém, quando o escudeiro e alcaide Vasco Rodrigues Leitão, acompanhado de sessenta homens de cavalo, apregoavam por D. Beatriz, no adro da Igreja de Santa Maria de Marvila, uma velha respondia que se devia anunciar pelo infante D. João por ser o verdadeiro herdeiro do trono português. Nesse episódio destacou-se também o peliteiro Domingos Eanes que, estando farto de ouvir o arraial, desembainha a espada, arrasta consigo outros populares e persegue Vasco Rodrigues, obrigando-o a fugir, escapando-se pela porta de traição.
Em Elvas, como Gil Fernandes tinha apregoado o arraial por Portugal, em resposta ao arraial do alcaide de Elvas, Álvaro Pereira, por D. Beatriz, é por este convidado a jantar e é preso. O detido garantiu-lhe que, na mesma tarde, seria libertado pela arraia-miúda das vinhas, como de facto aconteceu.
Os acontecimentos de Lisboa, Santarém, Elvas e de outros lugares são sinais de movimentos subterrâneos mais profundos prestes a explodir em Portugal.
Historiador
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia