A cena dos helicópteros a atacar ao som da Cavalgada das Valquírias é das mais memoráveis de Apocalipse Now, talvez o mais memorável dos filmes sobre a Guerra do Vietname, isto apesar da concorrência de Platoon, O Caçador ou Nascido para Matar. Vindos do lado do mar, os americanos metralham lá de cima e veem-se vietnamitas a correr pelos campos para salvar a vida. Hollywood não esconde aqui o sofrimento do inimigo, mas o foco acaba por ser sempre o trauma dos próprios americanos, a tragédia de uma das muitas guerras quentes travadas durante a Guerra Fria num país longíssimo de Washington. Como também Moscovo é distante do Afeganistão, teatro de outra das tais guerras quentes, nesse caso a serem os helicópteros soviéticos a metralhar tudo o que se mexia cá em baixo..Oficialmente, no lado vietnamita não houve trauma, disse-me há dias Nguyên Phan Quê Mai. Não houve trauma porque foram os vencedores, explicou-me a autora de Quando as Montanhas Cantam, um extraordinário livro agora publicado em Portugal, um retrato do Vietname do século XX através de uma saga familiar. Mas por trás da retórica triunfante de um regime tão comunista como nacionalista esconde-se a verdade, o inevitável trauma de quem sobreviveu à guerra. “Eu tenho um amigo que lutou na guerra e hoje em dia não pode dormir com a ventoinha no teto ligada, porque quando ele vê a ventoinha pensa em helicópteros americanos tentando atingi-lo”, contou-me Nguyên Phan Quê Mai. Pesadelos sem precisar do acompanhamento da música de Wagner..Falo da Guerra do Vietname por ter sido a maior das guerras quentes da Guerra Fria, aquela época em que as superpotências dividiam o mundo em coutadas de influência, armavam até aos dentes os aliados, mas evitavam um confronto direto que pudesse levar a uma escalada que arriscava ser nuclear. E falo da Guerra do Vietname porque acabou em 1975, com a queda de Saigão (e de novo os helicópteros, desta vez a retirar filas de gente em desespero no terraço de um hotel próximo da embaixada americana), mas, no entanto, as marcas do conflito estão lá, desde as bombas por explodir aos efeitos do Agente Laranja na água e no solo. Passados quase 50 anos do fim da guerra ainda se morre por causa dela. E o Vietname até conseguiu repor a paz e tornar-se um país de certo sucesso. Imaginem, pois, o que enfrenta o Afeganistão, que nunca deixou de estar em guerra e onde os mujaedines foram substituídos pelos talibãs..O mundo nunca esteve tão perigoso desde o fim da Guerra Fria (até da ameaça nuclear se fala), lê-se em editoriais dos principais jornais do mundo e ouve-se em discursos de políticos. Com a guerra na Ucrânia a ameaçar colocar a Rússia em conflito com a NATO e a resposta israelita ao massacre de civis pelo Hamas a aproximar o Médio Oriente de uma guerra em larga escala, é evidente que o mundo está perigoso, e isto sem falar da tensão na Ásia Oriental por causa da reivindicação da China sobre Taiwan. .Mas há mais, muito mais, no que diz respeito a vivermos num mundo perigoso, o cenário oposto às expectativas logo a seguir à queda do Muro de Berlim, quando até se teorizava sobre o fim da História. Numa conversa este verão em Lisboa, o fundador do instituto que elabora o Índice Global de Paz chamou-me a atenção para o grande número de conflitos na atualidade, 56, um recorde não só desde o fim da Guerra Fria, mas desde o final da Segunda Guerra Mundial. “O mundo deveria dar mais atenção aos pequenos conflitos. Antes de se tornarem grandes como na Ucrânia ou em Gaza”, alertou o australiano Steve Killelea. .Ora, se há algo que significa “o mundo”, esse algo é a ONU, fundada exatamente no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Imensamente criticável, seja pelo poder de veto dado aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, seja por esses cinco membros permanentes espelharem a relação de forças de 1945, e não a de 2024 (a Índia, o país mais populoso, está fora), a organização não deixa de ser o único fórum onde todos podem falar com todos e os pequenos países podem ser ouvidos. Isso, só por si, é admirável. E mesmo se haverá esta semana líderes a faltar à habitual chamada em Nova Iorque, e certamente intervenções de outros em tom conflituoso, nunca esquecer que é nos bastidores que muitas vezes o insolúvel se resolve..Termino como comecei. Com o Vietname e os Estados Unidos. Eu era um jovem jornalista quando, em 1995, as relações entre os dois países foram normalizadas e tive de escrever essa notícia no DN. Aconteceu duas décadas depois do fim da guerra, quando o Vietname do Norte, apoiado pela União Soviética, derrotou o Vietname do Sul, aliado da América, e reunificou o país. Um outro passo para a reconciliação foi dado por Bill Clinton, quando visitou Hanói em 2000, o primeiro presidente americano desde Richard Nixon, em 1969, um ano depois da ofensiva do Tet. Os inimigos de ontem começavam naquele final do século XX a enterrar o passado. As feridas eram muitas, claro, basta pensar no fascínio de Hollywood pelo conflito que dividiu os americanos ou no nome que os vietnamitas deram a esses anos de combate: Guerra de Resistência contra os Americanos para Salvar a Nação. Mas a ideia de seguir em frente mostrou-se forte, até fortalecida pela geopolítica, com o Vietname a não esquecer uma curta guerra com a China em 1979 e sobretudo as ambições chinesas hoje sobre o mar do Sul da China e, portanto, a aproximar-se dos Estados Unidos ao ponto de porta-aviões americanos já terem visitado o país. .“Os americanos são bem acolhidos. Eu servi de intérprete para os veteranos que estavam a regressar ao Vietname para ver o país onde tinham combatido, e alguns deles perguntaram-me, a chorar muito, por que os acolhíamos tão bem? Eu disse que nós entendíamos o impacto da guerra neles também. Muitos americanos voltaram, muitos veteranos tentaram reconstruir escolas, doaram medicamentos aos hospitais. Muitos escritores escreveram sobre o Vietname. Então, acho que nós aprendemos a valorizar a humanidade do lado americano”, disse-me Nguyên Phan Quê Mai, que ainda se recorda de brincar no abrigo antibombas que o avô escavou no jardim de casa e manteve mesmo depois da paz, porque receava que a guerra pudesse regressar..Diretor adjunto do Diário de Notícias