O espelho do estado do mundo
A 4ª Conferência Internacional sobre Financiamento do Desenvolvimento, a decorrer em Sevilha uma década após a anterior, decorre num mundo em convulsão. Os desafios globais do desenvolvimento englobam hoje questões sistémicas que estão na base do aprofundamento das desigualdades, da estagnação no número absoluto de pessoas em situação de pobreza extrema (depois de décadas de redução) e do aumento da fome e insegurança alimentar de forma contínua há vários anos. As necessidades de financiamento do desenvolvimento têm aumentado substancialmente, com os efeitos cumulativos das crises em curso (impactos dos conflitos, das alterações climáticas, dos choques económicos pós-pandemia) e com o alargamento das transformações imprescindíveis ao desenvolvimento sustentável, incluindo as transições climática e ecológica, energética, tecnológica e digital.
O problema não é a escassez de recursos, pois apenas 1% da riqueza mundial seria suficiente para corresponder às necessidades. Estes simplesmente não estão a ser mobilizados para o desenvolvimento sustentável, porque as prioridades são outras e os incentivos existentes - fiscais, comerciais, económicos, públicos e privados - não estão a ser direcionados de forma adequada. Além disso, a concentração da extrema riqueza, com um punhado de pessoas a acumularem tanta riqueza como a metade mais pobre da humanidade (cerca de 4 mil milhões de pessoas), questiona-nos sobre a adequação dos sistemas económicos que construímos, sobre que redistribuição e que capacidade de regulação será possível neste contexto. A riqueza do homem mais rico do mundo seria suficiente para erradicar a pobreza extrema 22 vezes.
Ao mesmo tempo, a ajuda ao desenvolvimento (não obstante as críticas que podem ser feitas ao sistema, por insuficiente eficácia, desigualdades de poder ou relações de dependência), tem conseguido salvar efetivamente vidas, criar resiliência nas comunidades, promover o acesso à educação e à saúde em muitas regiões, lutar contra a exclusão e promover a transformação social – mas está hoje fortemente ameaçada. Tendo em conta os cortes anunciados por parte de muitos países europeus, a ajuda ao desenvolvimento total dos principais doadores pode diminuir 30% até 2029. As consequências têm rostos e números claros: um estudo da Universidade de Boston aponta para 300.000 mortes só nos últimos meses, ligadas ao corte abrupto dos fundos da ajuda norte-americana e ao desmantelamento da agência de desenvolvimento, a USAID. Estes impactos estendem-se a diversos setores, incluindo a saúde e os direitos humanos, com muitas organizações locais anteriormente financiadas a terem de terminar os seus programas, em países onde o espaço cívico já estava cada vez mais ameaçado e o trabalho da sociedade civil dificultado pela imposição de restrições crescentes, um pouco por todo o mundo.
Nas instituições europeias, já não se reflete estrategicamente sobre o papel global da Europa e o seu contributo para a paz e para o desenvolvimento, porque o hype do Ocidente agora é outro: é preciso despender muitos milhares de milhões em armamento (comprando-o principalmente aos Estados Unidos), sem se equacionarem quais as opções para dar escala, coesão e coerência ao que já existe em termos de capacidade de segurança e defesa na Europa. A nível mundial, o tempo do investimento em acordos de paz abrangentes, que estabeleciam as bases para uma reconstrução do tecido social no “pós-conflito”, parece longínquo; a chamada comunidade internacional limita-se a gerir os danos para que estes não alastrem e as sociedades em situação de fragilidade permanecem num limbo de desenvolvimento adiado. O espaço deixado pela retirada da ajuda dos Estados Unidos nos países africanos será ocupado (já está a ser) por outros atores que não a Europa, quando existia uma janela de oportunidade para esta reforçar a sua presença e cooperar mais profundamente com benefícios mútuos.
A governação global multilateral está ferida, hoje as alianças são circunstanciais, os alinhamentos fragmentados e as linhas de defesa dos valores fundamentais ultrapassadas todos os dias. Trump, Netanyahu e Putin partilham não só a forma, mas o conteúdo: um desprezo pelo direito internacional, a subversão das regras acordadas da convivência em comum neste planeta, o poder pessoal acima do sentido de Estado, da democracia ou de valores básicos de dignidade humana, em que os meios que justificam todos os fins (os seus fins, entenda-se). A ordem internacional que conhecíamos implodiu – mas o que seremos capaz de construir de novo, a partir da confusão e incerteza reinantes?
As organizações intergovernamentais e multilaterais são, em boa medida, o que os Estados Membros querem fazer delas – e a ONU não é exceção. Os cortes de financiamento afetam a sua sustentabilidade, os seus órgãos de cúpula já não representam a multipolaridade ou a geoeconomia do mundo mas, mais importante do que isso, há líderes e países empenhados na sua irrelevância. As Nações já não estão Unidas, ou pelo menos não há condições (nem vontade) para que se unam, como aconteceu na aprovação do Acordo de Paris ou da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, ambos aprovados há exatamente uma década.
Em Sevilha, a sociedade civil, conjuntamente com a ONU, pede a reforma urgente da arquitetura global de financiamento, para que esta possa responder de forma eficaz aos desafios globais da pobreza e das desigualdades, mitigar a crise de sobre-endividamento dos países mais vulneráveis, reforçar a solidariedade internacional e a cooperação como basilares para a construção de um mundo mais justo e equitativo. Nada mais urgente e necessário. No entanto, depois dos discursos inspiradores e dos compromissos gerais, o resultado final será o espelho do mundo, sem a presença dos Estados Unidos, com vários países desenvolvidos a retirarem-se de assuntos tão cruciais como o clima e ou a dívida, e num contexto internacional adverso em que muito poucos ouvem ainda as vozes dos que sofrem.