O Ensino da História em Jorge Borges de Macedo

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No centenário do nascimento de Jorge Borges de Macedo (JBM), recordo o professor que foi e para quem o ensino da história implicava uma responsabilidade que ultrapassava as pesadas exigências críticas e científicas da investigação histórica; envolvia uma outra forma de responsabilidade, sobretudo humana, pelo que considerava não ser lícito falar do seu ensino ao de leve, por meras conjeturas, ou inspirado por novidades mal avaliadas, palavras com que iniciou a conferência "O Ensino Liceal da História e as Exigências Universitárias" (1969), apresentada no Liceu Pedro Nunes.

Nessa época tive a sorte de ser sua aluna na Faculdade de Letras de Lisboa em três cadeiras, um seminário e ainda contei com a sua orientação na minha tese de licenciatura. Ao fim de 25 anos de convivência com os problemas concretos do ensino da história, primeiro no liceu e depois na universidade, JBM sabia como a influência da aprendizagem inicial era, quase sempre, decisiva. Na sua opinião, os programas de história, apesar de todos os seus defeitos, não deviam considerar-se obstáculos a ensinar bem. Os maiores problemas do ajustamento dos dois níveis de ensino/aprendizagem da história resultavam das deficiências no exercício do espírito crítico mais do que de eventuais lacunas na matéria ensinada nas escolas. Defendia um ensino da história que contribuísse para a aquisição e exercício da crítica rigorosa e do exame racional, em que o homem fosse visto em alternativa e debate e não como uma necessidade, o que implicava o conhecimento de vencidos e vencedores, razões de confronto e resistências, numa constante exploração dos possíveis de cada momento, no encontro e compreensão das soluções que foram sendo dadas no decorrer de um processo que está longe de ser linear e de ter uma só sequência. Chamava a atenção para que, dentro de cada contexto, as decisões eram tomadas não só em consequência dos antecedentes, mas também como criadoras de soluções, sem estarem sujeitas ao determinismo.

Do ponto de vista pedagógico-didático, JBM acentuava a importância de uma cronologia rigorosa em termos das finalidades culturais e críticas do estudo da história, acompanhada pela perceção da complexidade do todo social em evolução. Não se tratava de saber mais factos ou de tornar a história mais pesada, mas sim de fornecer mais recursos para que se pudesse proceder a um renovado trabalho de espírito crítico, estabelecendo novos ajustamentos e relações. O seu objetivo era a formação de um pensamento autónomo não esquecendo que um nexo lógico e abstrato é insuficiente para abranger a possível realidade do já acontecido. Só a "vigilância do concreto" permitiria separar a história das ideologias.

JBM combatia o preconceito e ensinou que a problemática histórica é constante e aberta. Em nada altera o que já passou. O que muda é apenas a nossa interpretação e compreensão da realidade. Para ele, a compreensão das ações do homem na sua complexidade não podia dispensar o seu contexto, percebido na dimensão em que se realizou, na dinâmica da transformação que não pode dispensar a anterioridade nem o consequente. Nem a história podia servir para uma justificação ideológica do presente, nem devia ser apresentada num rigoroso e exclusivo encadeamento causal, sem alternativa, numa evolução legitimada e determinada pela atualidade. Nunca se satisfez com visões parcelares e sempre chamou a atenção para que sem a explanação do processo humano na sequência em que ocorreu pouco se poderá perceber o que o homem realizou e pode ou pensa realizar. O tempo é, pois, a condição necessária para esse conhecimento que é duplamente indireto: como produto mental e como reconstrução a partir dos dados alusivos ao já conhecido e que por eles indiretamente se reconstitui.

O enunciado anterior evidencia as preocupações metodológicas de JBM, chamando a atenção em "Ciência Histórica e Conhecimento do Homem" (1989) que esta é a única ciência a precisar de reconstituir os próprios factos que, depois, lhe compete interpretar ou integrar. Para isso, parte de uma conceção de cultura de base antropológica que afasta as generalidades abstratas, os modelos preconcebidos que têm implícita a conceção de que o homem atua sempre segundo finalidades e meios bem definidos quando, no fundo, é ele próprio que os cria, concebendo uma - entre várias - eficácias. Para JBM os modelos só valem quando dispõem de tempo histórico, sendo, sobretudo, um processo de aplicação, verificação e aprofundamento. Não dispensam a metodologia específica da averiguação dos factos, antes tentam superar a sua insuficiência com um instrumento de formulação de hipóteses e de organização dos conjuntos humanos. Estes só ganham sentido e operacionalidade numa perspetiva diacrónica. Por um lado, o passado, o saber herdado, as experiências acumuladas são indispensáveis na realização do presente. Por outro, a componente prospetiva permite abalançar para várias previsões.

Em JBM as questões são enunciadas não a partir de ideias simples como a da evidência de uma rutura política, mas procurando nexos de continuidade estrutural. Nele, a coerência entre pensamento e ação, teoria e didática era uma exigência constante. Nas aulas, nos seminários, nas reuniões, apresentava a experiência histórica de forma meticulosa, assente na consulta das fontes, mas não como um saber estático, já feito, antes como um conjunto de problemas sobre os quais se levantavam hipóteses interpretativas, sem preconceitos, nem preocupação de modas ou convicções instaladas, contrariando teses estabelecidas, guiando-se pelo seu próprio raciocínio. As conclusões só podiam ser heterodoxas e polémicas, elas próprias em construção.

No Prefácio à primeira edição da "História Diplomática Portuguesa. Constantes e Linhas de Força" (1987) explicará o processo didático subjacente à elaboração de uma obra concebida para o magistério universitário. Começou pelo convite que lhe foi dirigido pelos Altos Estudos da Força Aérea (1976) no sentido de organizar dois seminários destinados a um curso de Estratégia, o que o obrigou a resolver problemas de transferência da metodologia da história social e política para a história diplomática. Seguiu-se a lecionação de uma cadeira de História Diplomática de Portugal na Universidade Católica o que o levou a uma sistematização mais minuciosamente diacrónica, partindo da conjuntura internacional para estabelecer linhas de força orientadoras sem prejuízo de encontrar a resposta portuguesa que lhe foi dada e, assim, adquirir coerência didática e uma formulação concreta em constante verificação. Veio, depois, o desafio do Instituto de Defesa Nacional para a publicação dos textos das aulas em artigos na revista Nação e Defesa, mais tarde reunidos em livro, com uma 2ª edição em 2006. O prometido 2º volume ainda está por editar.

A obra evidencia a coerência da metodologia e do modelo pedagógico do autor: partindo do conceito geopolítico de nação situada, liga a política externa à história da sociedade como um todo, aos seus mecanismos de seleção e verificação; relacionando as soluções que os responsáveis pela decisão política foram capazes de impor, com a escolha das propostas que a comunidade foi capaz de estabelecer, perante as condições internacionais e as possibilidades internas de defesa, chama a atenção para as elites como um barómetro objetivo e eficaz para avaliar a capacidade coletiva de coesão e independência. A vida nacional é apresentada como um persistente conjunto próprio, dotado de originais possibilidades criadoras em que mesmo as propostas e modelos externos, muitas vezes recebidos com entusiasmo, são inevitavelmente calibrados por uma experiência amadurecida por séculos de história e de independência nacional.

Nem sempre bem compreendido, o legado historiográfico e pedagógico de JBM não pode dispensar o seu contexto, tal como ele nos ensinou.

Quinto, e último, de uma série de artigos publicados no âmbito do centenário do nascimento de Jorge Borges de Macedo (1921-2021).

Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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