O 'apartheid' cordial do Brasil

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No início de outro outubro, o de 2015, o DN publicava uma entrevista com a cineasta brasileira Anna Muylaert a propósito de um filme, premiado em Berlim e no Festival de Sundance, cujo título é em forma de pergunta: Que Horas Ela Volta?

A pergunta é feita tanto pelo filho de uma patroa, a propósito da ausência prolongada da mãe, como pela filha de uma empregada interna, pelos mesmos motivos, talvez para provar que amor, saudade, família são conceitos que transcendem as classes sociais.

Mas o filme de Muylaert é muito social. E muito político. A tal empregada interna, de origem nordestina, ao serviço de uma família de classe média alta, de São Paulo, recebe, na casa dos patrões, a filha, que mora no nordeste mas vai tentar estudar numa universidade paulistana.

E enquanto a mãe se submete, passivamente, a uma cultura feudal que o Brasil, ou um certo Brasil, insiste em cultivar em pleno século XXI, a filha, que já cresceu sob os governos de Lula da Silva, o político que um dia teve a óbvia e, ainda assim, revolucionária ideia de “incluir o pobre no orçamento”, recusa aqueles códigos.

Isto é, para escândalo dos donos da casa, e talvez ainda mais da progenitora, não se sujeita a dormir num cubículo, como a mãe, a comer comida diferente dos patrões, como a mãe, ou sequer à proibição tácita de jamais pisar a piscina, como a mãe. E acaba, na sequência, por ir morar sozinha.

Em paralelo ao dia a dia na casa, o escândalo definitivo: a filha da empregada tem nota para entrar na universidade e o filho da patroa, não. “O filho do pobre, negro e de periferia deve ter tanto direito a fazer uma universidade como o filho da elite”, eis outra óbvia e, no entanto, revolucionária ideia de Lula.

Dessa forma, Que Horas Ela Volta?, mais do que o título de um filme, tornou-se, em certa medida, a pergunta símbolo da Era Lula, por representar a revolta de milhões de brasileiros contra um apartheid, mais cordial do que o outro, mas ainda assim um apartheid.

Entretanto, há outra pergunta simbólica da Era Lula, por representar a contra revolta da vanguarda do atraso, isto é, da elite tropical eternamente saudosa das capitanias hereditárias.

Foi feita por Danuza Leão, socialite falecida em 2022, numa coluna no jornal Folha de S. Paulo, algures em 2012. Perguntou ela: “Ir a Nova Iorque ver os musicais da Broadway já teve a sua graça, mas, por 50 reais mensais, o porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça? Enfrentar 12 horas de avião para chegar a Paris, entrar nas perfumarias que dão 40% de desconto, com vendedoras falando português e onde você só encontra brasileiros – não é melhor ficar por aqui mesmo?”.

Paulo Guedes, o ministro da Economia de Jair Bolsonaro, esboçou, em 2020, uma outra versão da pergunta: “Qual é o problema de o dólar estar alto?”, questionou. “Antes [durante os primeiros governos de Lula e os governos de Dilma, está claro] até a porteira já ia à Disneylândia, era uma festa danada! ‘Pera aí. Vão às praias do nordeste, está cheio de praia bonita lá, vão a Cachoeiro do Itapemirim ver onde o Roberto Carlos nasceu...”, ordenou Guedes, uma figura, tal como Danuza, obcecada por porteiros. E fiel guardião do apartheid cordial.

Em suma, Lula pode ter cometido muitos erros – mas a elite que o odeia, na verdade, odeia-o pelo que ele fez de certo.

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