Viagem em Itália (1954): George Sanders e Ingrid Bergman.
Viagem em Itália (1954): George Sanders e Ingrid Bergman.

Na companhia de Rossellini

Será que o cinema é sempre documental? Eis uma pergunta suscitada por um belo ciclo de filmes na Fundação Gulbenkian.
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Viajando em Itália. Uma vez mais. Este domingo, às 16h00, Viagem em Itália (1954), de Roberto Rossellini, será projetado no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, dando início a um ciclo intitulado “O Poder e a Glória”. Com um toque de ironia e provocação que vale a pena celebrar. Porquê? Porque sendo Viagem em Itália um dos símbolos mais depurados da reconversão das formas clássicas de ficção, com efeitos decisivos na formação de muitos cineastas das “novas vagas” da década de 60, esta é uma seleção “com foco no cinema documental”. Pedro Mexia, curador do ciclo, conclui mesmo o seu texto de apresentação com este parágrafo: “Numa época em que cada vez mais se esbatem as fronteiras entre ficção e documentário, “O Poder e a Glória” apresenta a “variedade da experiência documental”: quase exclusiva, alternativa ou, digamos, auxiliar. Podemos mesmo concluir que todo o cinema, filmando pessoas e lugares, é um documentário.”

Não é todos os dias, de facto, que uma iniciativa deste género, longe de se limitar a uma acumulação de clássicos (o que, em qualquer caso, não seria desprezível), nos convoca para uma visão de contagiante agilidade histórica e analítica. Trata-se de reunir um conjunto de títulos capazes de nos ajudar a repensar o efeito de verdade que o cinema integra ou, de algum modo, procura desde o seu aparecimento. Na certeza de que a beatice “naturalista” que passou a dominar o espaço televisivo (com triste destaque para a avalanche de “análises” em que diariamente se afoga o conhecimento do mundo) tem tanto de simplismo descritivo como de chantagem narrativa.

A sedução, não apenas temática, mas genuinamente cinéfila do ciclo resulta também da sua peculiar organização. Isto porque haverá três etapas, cada uma centrada num cineasta: o já citado Rossellini (set./nov.) e ainda, em 2026, Éric Rohmer (jan./fev.) e Frederick Wiseman (março/junho). Enfim, será consensual identificar Wiseman como documentarista (dos maiores de toda a história do cinema, a meu ver), mas que dizer de Rohmer, companheiro de Godard e Truffaut nos tempos heroicos da escrita para os Cahiers du Cinéma e dos primeiros títulos da Nouvelle Vague?

Enfim, os filmes escolhidos assim o confirmam, com destaque para o documentário de Rohmer sobre Carl Th. Dreyer, uma produção de 1965 integrada na série “Cineastas do nosso tempo” (1964-1972), criada por André S. Labarthe e Janine Bazin para a ORTF. Ainda assim, como enquadrar a inclusão dessa obra-prima de austeridade e inteligência que é A Minha Noite em Casa de Maud (1969)? Não é esse um filme que integra a série a que Rohmer deu a pedagógica designação de “Seis Contos Morais”? E, precisamente porque se trata de um arfante exercício moral, sob o signo de Blaise Pascal, enredado nas linhas cruzadas da ordem e do desejo, que matérias documentais aí encontramos?

Uma das respostas possíveis envolve as palavras e o seu poder. De facto, aquilo que Rohmer coloca em cena na relação fugaz (ou talvez não...) de Françoise Fabian e Jean-Louis Trintignant é, justamente, a inigualável vibração do cinema. A sua secreta sensualidade nasce da certeza de que a câmara guarda algo das energias dos corpos que a ela se expuseram, ou foram expostos (“filmando pessoas e lugares”, para retomar a expressão de Pedro Mexia).

O cinema de Wiseman envolve, claro, uma celebração formal dessas energias - veja-se o prodigioso La Danse (2009), sobre o Ballet da Ópera de Paris. Seja como for, importa relembrar também as “biografias históricas” que Rossellini fez para televisão incluindo, em 1972, uma dedicada a Pascal. A esse propósito, resta saber se somos dignos da herança do seu combate por uma inovadora conceção do espaço televisivo: “Devemos exigir que se abra, no seio das televisões europeias, um autêntico debate sobre a missão da televisão, sobre as pesquisas a desenvolver para inventar as novas linguagens que, em função de um grande número de sinais, somos levados a pensar que são aguardadas pela sociedade contemporânea” - são palavras também de 1972.

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