Lição mexicana

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Vi alguns títulos sobre a vitória de Claudia Sheinbaum que enfatizavam o facto de o México ter eleito uma presidente antes dos Estados Unidos, como se a história de um país se fizesse por comparação com a de outro, mesmo que seja um vizinho com o qual se partilha uma História atribulada e até é o mais poderoso do mundo. Não tenho dúvidas de que um dia haverá uma mulher na Casa Branca, e se dependesse do voto popular até teria já acontecido em 2016, quando Hillary Clinton enfrentou Donald Trump, mas o que importa aqui é o sucesso de Sheinbaum, apadrinhada pelo presidente cessante Andrés Manuel López Obrador, também conhecido como AMLO, mas obtendo uma votação mais expressiva do que a daquele nas eleições de 2018.

Com quase 130 milhões de habitantes, o México é o décimo país mais populoso e é curioso que nessa dezena sejam já vários os países que foram liderados em algum momento da História recente por uma presidente ou uma primeira-ministra, caso da Índia, com Indira Gandhi, do Paquistão, com Benazir Bhutto, ou do Brasil, com Dilma Rousseff, só para falar de alguns nomes mais conhecidos. Agora, apenas a China, os Estados Unidos, a Rússia e a Nigéria, nesse clube dos dez grandes, nunca tiveram uma líder.

Contudo, há pormenores que fazem da eleição de Sheinbaum uma situação especial, que merece ser olhada ao pormenor: sim, o país é importante em vários aspetos, por exemplo, é o mais populoso da vintena que fala espanhol, e também um dos membros do G20, o grupo das 20 maiores economias, mas a própria candidata vencedora destaca-se pelo seu percurso de vida. É neta de imigrantes europeus, com os avôs maternos a chegarem durante a Segunda Guerra Mundial fugidos do nazismo; é judia num país de esmagadora maioria católica; é doutorada em Engenharia da Energia e uma conceituada cientista, que chegou a fazer investigação em universidades dos Estados Unidos.

Que um colosso, incluindo cultural, como o México eleja uma mulher para chefe do Estado é um sinal para o mundo. Que Sheinbaum não seja a herdeira de uma dinastia política é outro, e inspirador.

Já referi Indira Gandhi e Benazir Bhutto, ambas líderes com grandes dotes políticos, mas filhas de primeiros-ministros. Como, continuando só nos dez países mais populosos, Megawati Sukarnoputri era filha do primeiro presidente da Indonésia e Sheik Hasina, atual primeira-ministra do Bangladesh, é viúva de um presidente. Na verdade, a exceção até agora em relação às filhas e viúvas de líderes era a brasileira Dilma Rousseff. Mesmo Hillary Clinton, mulher de indesmentíveis méritos e antiga senadora e antiga chefe da diplomacia americana, não deixava de ser a mulher do antigo presidente Bill Clinton, tendo começado por ganhar visibilidade nacional nos oito anos em que foi a primeira dama dos Estados Unidos.

Sheinbaum entra na política por iniciativa de AMLO, quando este foi eleito presidente da Câmara da Cidade do México. Foi depois ela própria autarca da capital mexicana. E agora a sua ascensão ao poder teve muito que ver com o apoio do presidente, de saída por a Constituição Mexicana permitir um só mandato.

Mas ser um delfim político é bem diferente de ser o herdeiro de uma família política. Por isso a israelita Golda Meir, primeira-ministra em 1973, merece um lugar na História diferente da cingalesa Sirimavo Bandaranaike, que em 1960 se tornou a primeira mulher chefe de Governo a nível mundial, tal como a islandesa Vigdís Finnbogadóttir, eleita em 1980, não é comparável à argentina Isabelita Perón, que de vice-presidente de Juan Perón passou a presidente, em 1973, quando o marido morreu, tornando-se a primeira mulher chefe de Estado, com exceção das rainhas. Sheinbaum vem, isso sim, na linha de mulheres como a britânica Margaret Thatcher ou a alemã Angela Merkel, curiosamente ambas cientistas, tal como a nova presidente mexicana.

A conquista de direitos políticos pelas mulheres foi lenta e gradual. No final do século XIX, a Nova Zelândia foi pioneira em conceder o direito de voto às mulheres, e logo no início do século XX a Finlândia também inovou ao reconhecer o direito das mulheres não só de votar como de ser eleitas. Depois, em 1920, as americanas já puderam votar nas Presidenciais, em 1928 todas as britânicas ganharam direitos políticos, e no final da Segunda Guerra Mundial o sufrágio universal impôs-se também em França.

Em Portugal, a Monarquia Constitucional não deu o voto às mulheres e os republicanos, depois do 5 de Outubro de 1910, também não, tendo o voto isolado de Carolina Beatriz Ângelo nas eleições de 1911 não passado de um gesto cívico de protesto que não mudou a realidade. Assim, só com o Estado Novo foi reconhecido o direito de voto feminino e com condições, tendo as primeiras três deputadas sido eleitas em 1934 na lista única da União Nacional: Domitila de Carvalho, Maria Cândida Parreira e Maria Guardiola. E foi preciso esperar até 1970, já com Marcelo Caetano no lugar de Salazar, para uma mulher entrar no Governo: Maria Teresa Lobo foi subsecretária de Estado da Saúde.

Com o 25 de Abril de 1974 Portugal finalmente alinhou a sua legislação com a das democracias ocidentais e nas Eleições Constituintes, realizadas um ano depois, o sufrágio foi universal, sem quaisquer distinções de género, rendimento ou educação entre os portugueses. E quando Maria de Lourdes Pintasilgo se tornou primeira-ministra em 1979, num Governo de iniciativa presidencial, por pouco o país não era pioneiro, já que Margaret Thatcher tomara posse no Reino Unido meros meses antes. Falta ainda eleger uma portuguesa para o Palácio de Belém, mas o atual Governo conta com sete ministras e as deputadas representam hoje cerca de um terço dos nossos representantes na Assembleia da República.

Voltando ao México e a Sheinbaum, que teve até como principal rival outra mulher, o que agora vai contar verdadeiramente é a forma como governará nos próximos seis anos. São muitos os desafios num país que é membro da OCDE, também uma potência industrial que beneficia de ser vizinha dos Estados Unidos, mas que também sofre com essa vizinhança americana, o maior mercado de drogas do mundo, que explica o tremendo poder dos cartéis de traficantes, que AMLO procurou contrariar dando mais poder ao Exército, mas com resultados escassos.

Como tudo o que acontece no lado norte da fronteira afeta e muito México, Sheinbaum terá também de adaptar o seu relacionamento com o inquilino da Casa Branca consoante as Presidenciais de 5 de novembro confirmem Joe Biden na Casa Branca ou, pelo contrário, ditem o regresso de Donald Trump. Mais fácil será, em teoria, a presidente sair da sombra do antecessor, pois não só este tem dito que sabe qual o seu novo lugar, como a fortíssima votação de Sheinbaum lhe dá autoridade para governar à sua maneira, mesmo que se preveja continuidade nas políticas sociais, uma das apostas de AMLO.


Diretor adjunto do Diário de Notícias

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