Lições dos romanos

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É difícil permanecer imperador na presença do médico e, mais difícil, permanecer homem”, confessa por via epistolar Adriano a Marco Aurélio, destinado a ser imperador. O texto, fortíssimo, é de Marguerite Yourcenar, e foi escrito originalmente em francês. Desde a primeira publicação, em 1951, Memórias de Adriano tornou-se um fenómeno global, sendo traduzido em inúmeras línguas, incluindo português. Mas as palavras que citei, ouvi-as serem ditas agora em espanhol por um grande ator, Lluís Homar, no cenário mágico do Teatro Romano de Mérida, a capital da antiga província romana da Lusitânia.

Mérida, riquíssima em vestígios da Era Romana e com um extraordinário museu, merece uma visita em qualquer época do ano. Mas no verão, graças ao Festival Internacional de Teatro Clássico, a cidade ganha um interesse suplementar. O calor em julho e agosto, claro, é muito, mas os espetáculos começam às 22.45, quando a temperatura na capital da Extremadura espanhola desce um pouco, e a noite realça a beleza do teatro com dois mil anos. As peças são todas de temática greco-romana, algumas clássicos, outras obras contemporâneas ou até escritas de propósito para este festival.

Adriano foi um dos grandes imperadores romanos. E tem a particularidade de ter nascido em Itálica, hoje Santiponce, nos arredores de Sevilha. É possível, aliás, visitar um anfiteatro construído na era do próprio Adriano, que governou no século II da nossa era. Outro imperador romano nasceu ali, Trajano, primo de Adriano e que, ao torná-lo filho adotivo, o transformou em sucessor. Foi uma época de apogeu do Império Romano, o tempo dos cinco bons imperadores.

Outra grande época de Roma coincidiu com o tempo de Augusto, o primeiro imperador. Foi em sua honra que Mérida foi fundada em 25 a.C, daí o nome de Emerita Augusta, do qual deriva a atual designação da cidade, construída junto ao rio Guadiana. Pela condição de capital provincial, pela própria ligação a Augusto, Mérida foi sendo embelezada com inúmeros monumentos. Mas com o passar do tempo, muitos transformaram-se em ruínas e até ficaram meio enterrados. Foi o que aconteceu com o teatro. Sabia-se da sua existência, mas só no início do século XX começaram as escavações que depois permitiram a sua reconstrução, em grande medida recuperando a monumentalidade.

Também nunca devemos esquecer que nós, portugueses e espanhóis, em certa medida todos os europeus ocidentais e do sul, somos herdeiros desses romanos. É um legado tão evidente que nem precisa de ser desenterrado. Não que não houvesse cá outros povos antes, entre eles os lusitanos que fazem parte da nossa mitologia nacional. Nem que não tenham vindo outros povos para a Península Ibérica ao longo dos séculos, como os suevos e o visigodos e depois os árabes, que no Algarve ficaram 500 anos e no sul da Andaluzia mais de 700. Mas culturalmente a grande influência continua a ser a dos romanos, a começar pela língua, neta ou bisneta do latim, e não esquecer que até o cristianismo, vindo da periferia oriental do Império, chegou nessa época.

Há uns anos, numa reportagem em Mérida, entrevistei Trinidad Nogales, diretora do Museu Nacional de Arte Romana. E perguntei-lhe isso mesmo: até que ponto somos herdeiros desses romanos? A resposta da historiadora foi: “A nossa raiz cultural ocidental tem uma percentagem altíssima da cultura clássica - o direito, a medicina, as vias de comunicações, o sistema geopolítico que manteve as estruturas geopolíticas romanas, a Igreja manteve as estruturas latinas e romanas na própria articulação da realidade eclesiástica. O Império Romano criou um sistema político com uns níveis de conceção que, atrever-me-ia a dizer, até praticamente à Revolução Francesa se manteve em grande medida. Claro que a Revolução Industrial já trouxe uma mudança absolutamente enorme para a História da humanidade e, agora, no século XXI, a revolução tecnológica alterou e mudou toda a estrutura, mas a nossa raiz essencial é plenamente romana. Isto é algo que repito sempre aos jovens: a maior pobreza não é a material, a maior pobreza não é não ter um telemóvel de última geração como tem o amigo ou o vizinho, a maior pobreza é a cultural. Essa não se pode adquirir em nenhum mercado, adquire-se com o conhecimento do nosso passado. Ao aprendermos e conhecermos o nosso passado, entenderemos e criaremos um bom futuro, mas se não conhecermos o nosso passado como povo, não nos sentimos identificados com esses elementos que fazem parte da nossa cultura. As pessoas precisam desses elementos de referência.”

Memórias de Adriano é um grande livro. De uma grande escritora belga. Sobretudo, faz-nos pensar. “É difícil permanecer imperador na presença do médico, e, mais difícil, permanecer homem”, é a confissão de fraqueza de alguém que supostamente é todo-poderoso. Toda uma lição. Adriano terá mesmo escrito umas memórias, só que não chegaram até nós. Mas podemos aprender muito com estas palavras ficcionadas por Yourcenar e agora declamadas por Homar. Aliás, podemos aprender sempre muito com os romanos, povo cosmopolita, com ambição de universalidade, como se imaginam ser os portugueses e os espanhóis.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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