Legislar "de pernas para o ar" 

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Já disse e volto a repetir. Nunca fui fumadora e nunca questionei os malefícios que o ato de fumar tabaco provoca, de forma ativa ou de forma passiva, mas também quero esclarecer que existem outras consequências que advêm da proposta de alteração à Lei do Tabaco, que já foi aprovada na generalidade, no Parlamento, no passado dia 29 de setembro, e que não estão a ser ponderadas como deviam.

Considerar a saúde como uma prioridade e um bem em si próprio, não deve fazer com que tudo o resto seja negligenciado. O Estado tem o dever de atender a todos os interesses envolvidos em cada iniciativa legislativa e, neste caso em concreto, a economia (e as empresas que a alimentam) não pode ser desconsiderada, desmedidamente, por tais medidas.

Proibir e reprimir de forma desproporcional e discriminatória é, no meu entender, o que está na base de algumas das alterações que o Conselho de Ministros aprovou a 11 de maio deste ano e que visam, incisivamente, os estabelecimentos de restauração e bebidas no que diz respeito ao consumo e à venda de tabaco.

Há, pelo menos, 16 anos que os empresários deste setor se deparam com constantes alterações à lei, que obrigam a investimentos financeiros em equipamentos e infraestruturas, para meses depois se ignorar em absoluto essas mesmas exigências. Na generalidade não é permitido fumar, mas criam-se requisitos por demais exigentes para que ainda se possa fumar, para agora se dizer que, afinal, já não vai ser mais permitido fumar nesses mesmos espaços, a par de outros, mesmo que ao ar livre.

Já que, assumidamente, é sobre aspetos económicos que quero incidir esta minha reflexão, destaco mais uma discriminação clara da lei, que proíbe a venda de tabaco em "estabelecimentos de restauração ou de bebidas, incluindo os que possuam salas ou espaços destinados a dança, assim como nos recintos de diversão, nos casinos, bingos, salas de jogo e outro tipo de recintos destinados a espetáculos de natureza não-artística", mas que permite essa mesma venda em muitos outros locais. Será mesmo possível pensar-se que se vai diminuir o consumo do tabaco com esta proibição? Deixemo-nos de hipocrisias, apenas se está a transferir a opção de compra para todos os outros locais onde é permitida a venda.

A lei, de forma discricionária, proíbe e reprime sem se apresentarem quaisquer argumentos. A lei discrimina, não pensa em todos os cidadãos por igual. Nem em todos os empresários por igual, muito menos nos mais pequenos que ficam impedidos de manter uma fonte de receita que é importante.

Onde estão os fundamentos que sustentam estas alterações? Nos minutos em que, após o Conselho de Ministros, foram apresentadas as propostas legislativas do Governo, ouvi, sim, falar da transposição de uma diretiva europeia sobre produtos de tabaco aquecido - mais uma vez, quisemos "ser mais papistas que o Papa", indo mais longe do que seria uma mera transposição - e também ouvi referências ao Plano Nacional de Saúde 2030, mas não ouvi um único apontamento acerca de um relatório que deveria ter existido e ter sido apresentado à Assembleia da República sobre o impacto da Lei do Tabaco ainda em vigor.

Também não ouvi uma palavra que fosse sobre uma aposta séria em medidas que são, na minha opinião, fundamentais para que o processo flua de forma eficaz e para que se atinjam os objetivos em termos de saúde, como a disponibilização de consultas ou comparticipação de medicamentos para cessação tabágica, e as tão necessárias ações de formação, educação e sensibilização que deveriam ser apostas sérias do nosso Estado.

Na próxima etapa deste processo, que é a discussão na especialidade na Assembleia da República, resta-me esperar que esta seja uma oportunidade para o diálogo sem enviesamento e para uma discussão pautada pelo bom senso, mas que, acima de tudo, quem optou por este caminho da proibição, da punição e da discriminação, perceba que, ao decidir sem "estudar a matéria" e envolver todos os atores, está a "legislar de pernas para o ar".

Secretária-geral da AHRESP - Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal

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