Integração e continuidade de cuidados - o papel das pessoas
Quando vários médicos e outros profissionais de saúde, em diferentes serviços e instituições, em momentos diversos, cuidam do mesmo doente, o risco de descontinuidade e de fragmentação de cuidados é muito elevado. O envelhecimento da população e a carga de doença devida à morbilidade crónica múltipla (várias doenças crónicas coexistentes na mesma pessoa), com perdas de funcionalidade e dependência associadas, exigem uma transformação profunda do modelo atual de prestação de cuidados. Assim, a integração e a continuidade de cuidados, a par do acesso, são, talvez, os maiores desafios para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e para os sistemas de saúde em todo o mundo.
Como superar a descontinuidade e a fragmentação de cuidados?
É necessário acudir às necessidades urgentes de recursos e de meios, no SNS e no sector social. E, ao mesmo tempo, conduzir uma transformação que vá além de meros ajustamentos estruturais e organizacionais ou do redesenho do modelo existente. Como sublinha David Hunter (2018): "Num sistema complexo a mudança é necessariamente adaptativa - no início do processo não há uma solução pré-definida. Ela emerge no decurso do processo de mudança". A gestão competente deste processo deve ser participada pelos cidadãos, profissionais, investigadores, para além dos decisores políticos. Requer investimentos e mudanças de estratégia, de estrutura, de funcionamento, e uma cultura organizacional mais identitária do SNS, com entrosamento entre a saúde e outros sectores, em particular o sector social.
Existem experiências inspiradoras mas não há soluções "chave-na-mão". Clarificar valores e princípios e, ao mesmo tempo, identificar, divulgar e incentivar iniciativas inovadoras são tarefas imediatas a realizar. Um princípio basilar é o de que o papel do cidadão, do doente, do utente (conforme as circunstâncias e preferências) deve evoluir substancialmente. Isto é, que seja capaz de influenciar o mais possível que as respostas se adaptem às suas circunstâncias e problemas de saúde, e que tenham em conta os seus percurso de vida, necessidades de cuidados e aspirações.
Com que instrumentos?
A par da maior participação dos cidadãos, com apoio à literacia, capacitação, empoderamento e possibilidade de influência real nos serviços e cuidados de que necessitam, serão necessários desenvolvimentos instrumentais essenciais. O mais crítico de todos é o dos sistemas de informação. A começar pela interoperabilidade de aplicações e orientado, na sua arquitetura e funcionalidades para a centralidade da pessoa. Esta centralidade poderá materializar-se num processo clínico electrónico unificado, resumo inteligente de avaliação-síntese e plano individual de cuidados, permanentemente atualizados. Para ele devem convergir, por interoperabilidade, súmulas relevantes a partir das diversas aplicações clínicas mais especializadas. É óbvio que estas devam manter-se pelos requisitos de diferenciação técnico-científica específicos. Daí a necessidade de recorrer a dispositivos de Inteligência artificial, para facilitar a referida interoperabilidade. Sem tal perspetiva estratégica, estrutural e também instrumental, a dita "integração de cuidados" continuará a ser um slogan.
Paralelamente, haverá que modificar o modelo do financiamento - que deverá orientar-se para resultados, promover a integração de cuidados e prevenir a prestação de cuidados desnecessários, redundantes ou inadequados.
Também a gestão e a governação clínica devem reorientar-se para apoiar as equipas multiprofissionais, visando os resultados desejados, com supervisão de procedimentos para melhoria contínua de qualidade.
Lembremo-nos do sucesso das unidades coordenadoras funcionais de saúde materno-infantil. Promoveram a multidisciplinaridade, a comunicação e o entrosamento interinstitucional centrado nas pessoas: as grávidas e seus embriões e fetos; os recém-nascidos; e as crianças - em vez da integração de organizações ou da gestão. Contribuíram para indicadores de saúde materno-infantil ao nível dos melhores do mundo, quando tais posições não se verificam noutros sectores económicos e sociais do país.
Redes de proximidade e papel das pessoas e sua formação
A continuidade, longitudinalidade e integração de cuidados requerem informação, comunicação e coordenação de cuidados, sedeados o mais possível nos contextos e comunidades locais das pessoas/doentes. A integração de cuidados será facilitada por coordenação personalizada, pelas equipas de proximidade. O sistema deverá ele próprio, e não o utente, proporcionar a organização das respostas nas situações que necessitem de vários tipos de cuidados, de uma forma articulada.
Nunca é demais salientar a importância dos saberes, das atitudes e das práticas das pessoas. Quer das que necessitam de ser cuidadas, quer dos profissionais que delas cuidam. A presença de lideranças esclarecidas e empenhadas a par das competências técnico-científicas, a todos os níveis, são ingredientes que requerem formação, acompanhamento e avaliação dos dirigentes institucionais e dos serviços, e dos coordenadores de equipas, visando os resultados desejados.
Replicar experiências de sucesso
Será decisivo desenvolver um processo sistemático de valorização dos projetos locais que otimizem a integração dos percursos de saúde. Serão necessários recursos profissionais de gestão, técnicos e clínicos para garantir adaptabilidade de soluções aos contextos e características locais. Isso facilitará dinâmicas transformadoras bottom-up dos serviços para o sistema, e top-down do sistema para o cidadão, num processo de valor acrescentado assente em rigor, profissionalismo e inteligência colaborativa, com desenvolvimento de práticas inovadoras e novas dinâmicas de trabalho interdisciplinar e interinstitucional.
Médico. Diretor da Escola de Saúde e Desenvolvimento Humano da Universidade de Évora. Presidente da Fundação para a Saúde - SNS