Governar o caos ou ser governados por ele?

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Cada vez mais a promessa de progresso colide com a fragilidade das instituições que nos sustentam. Entre a disrupção tecnológica e o esvaziamento das democracias, emerge um novo paradigma de poder não eleito, não transparente, mas profundamente eficaz. O que está a acontecer nos Estados Unidos é apenas a face visível de uma transformação mais profunda, em que a governação se torna algoritmo e o Estado espectador do seu próprio declínio.

De regresso ao futuro, no limiar da Inteligência Artificial Geral (AGI), será que o Estado pode competir com as plataformas e poderá continuar a existir como garante do bem comum?

Durante séculos, foi o Estado que construiu a ideia de sociedade. Criou escolas, hospitais, redes públicas, definiu leis, redistribuiu recursos e garantiu a justiça. No entanto, perante a velocidade das máquinas, essas estruturas parecem cada vez mais lentas, inadequadas e quase anacrónicas. A AGI não é apenas uma ferramenta, é uma força civilizacional que ameaça desestruturar os alicerces do pacto social. Com ela, surgem sistemas que aprendem, decidem, julgam e governam. E fazem-no fora do alcance dos mecanismos tradicionais de escrutínio.

A utopia vendida por Silicon Valley é sedutora, com governos eficientes, serviços instantâneos e decisões imparciais. Mas sob esta camada de inovação esconde-se uma reconfiguração do poder. Os algoritmos são treinados para prever e otimizar, mas não reconhecem o valor da equidade ou da empatia.

O médico de família transforma-se num assistente digital. O professor torna-se um tutor adaptativo automatizado. O funcionário da segurança social é substituído por um chatbot que ouve mas não sente, responde mas não questiona. A lógica pública é substituída por rankings e previsões. O cidadão, outrora titular de direitos, torna-se um mero utilizador passivo.

O caso das “cidades liberdade” (charter cities ou liberty cities) e das “cidades flutuantes” (seasteading), propostas por Peter Thiel e Elon Musk, revela até onde pode ir esta nova filosofia política tecnolibertária. Trata-se de criar espaços fora da jurisdição dos Estados, onde a regulação cede ao mercado, onde o território é propriedade e não pertença coletiva. O Estado nesse modelo não desaparece, torna-se um gestor de exceções, um coletor de resíduos humanos que o sistema já não considera úteis.

Neste contexto, a identidade dilui-se e o cidadão é perfilado, monitorizado e segmentado. A justiça torna-se estatística e a solidariedade um dado fora da equação. As plataformas não pedem licença para governar, instalam-se, impõem normas e criam realidades paralelas incompreensíveis para o cidadão comum.

Mas este destino não é inevitável. Ainda podemos escolher o que fazer com o futuro. O Estado pode reinventar-se, para ser menos burocrático, mais relacional, menos opaco, mais distribuído, menos centralizador e mais atento às novas territorialidades digitais. Os serviços públicos não precisam ser vítimas da inovação, podem ser o seu laboratório ético. Um espaço onde a tecnologia esteja ao serviço da dignidade e não da eficiência cega.

A política, se quiser sobreviver, terá de recuperar a sua dimensão fundadora, voltando a ser o lugar onde decidimos juntos o que queremos ser. Com coragem para dizer que há fronteiras que os algoritmos não devem cruzar, que há decisões que só podem ser humanas e que governar o caos é possível, se não o aceitarmos como destino natural.

A espiral tecnológica ecoa cada vez mais à nossa volta, mas ainda há em nós um grito de revolta consciente, incómodo e cheio de perguntas por responder, onde ainda pode renascer um novo contrato social. Um contrato que não abdique da justiça, da proximidade e da responsabilidade, acreditando que o futuro caótico ainda pode ser governado em democracia.

Especialista em governação eletrónica

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