Globalização em trânsito
Vivemos na era dos ajustes acelerados. As nossas vidas transformaram-se mais em 10 anos do que nos 30 ou 40 anteriores, obrigando-nos a adaptações no consumo, socialização e mercado de trabalho. A pandemia tem sido um tremendo patamar disruptivo nesse caminho, mas a verdade é que muito já havia sido trilhado. Na política internacional estamos na mesma métrica. Regimes híbridos são hoje mais atrativos e convivem no sistema com autocracias e democracias. Estas placas tectónicas estão abertamente em tensão e a pertinência das suas políticas públicas, como superação de epicentros pandémicos, constituem um teste vital à valorização dessas tipologias de regime. Os processos de produção, compra, exportação e administração de vacinas não são, por isto, meros mecanismos sanitários, mas o espelho da confiança nas atuais cadeias industriais de bens essenciais, redes logísticas, cooperação interestadual, rapidez na chegada ao utente. Tudo isto já era válido para produtos alimentares, vestuário, aparelhos tecnológicos, e passou agora a ser evidente na saúde pública, passaporte para a progressiva normalidade socioeconómica.
Serve isto para lembrar do ajustamento no comércio global, muito em foco pelo recente bloqueio do Suez, artéria comercial estrutural da rede global, mas quase quatro vezes inferior na quota de trânsito se comparada com o congestionado estreito de Malaca, a grande ligação entre o Índico e o Pacífico. Apesar do pânico comercial, dos custos avultados para intervenientes diretos e indiretos e da oscilação no preço do petróleo, a globalização comercial não parou, tendo até revelado adaptações interessantes, algumas delas já exploradas antes deste episódio. Uma prende-se com o aumento para o dobro das exportações ferroviárias da China para a Europa nos dois primeiros meses do ano, em comparação com o mesmo período do ano passado. Outra colocou a Rota do Cabo como alternativa preferencial ao Suez, beneficiando outros portos que não os habituais. Outra ainda, muito vangloriada pela Rússia, reforçou o apetite pela Rota Polar, mais rápida e barata do que a do Suez (e muito mais ainda que a do Cabo) nas ligações entre mercados asiáticos e europeus, mas bastante menos transitável. Essa rota, que beneficia diretamente da deterioração climática, tem evidentes inseguranças logísticas e ambientais, mas reposiciona as cadeias de distribuição russas na globalização. Além disso, o bloqueio do Suez acabou por criar um ambiente propício à diversificação logística energética, nomeadamente do gás do Médio Oriente para a Europa, valorizando os canais tradicionais da exportação russa e reavivando a pertinência do Nord Stream 2 para o mercado alemão.
Por outras palavras, um navio encalhado num canal tem uma expressão geopolítica simultaneamente de risco e oportunidade, mas não nos deve é conduzir a um raciocínio assente num jogo de soma zero entre as inseguranças no comércio global e a anulação de valor destas redes. Os ajustes da globalização, que são anteriores à pandemia e aos quais se tem chamado de desglobalização, podem hoje ser vistos por ângulos mais sofisticados do que um mero rumo inexorável à autocracia. O que se tem visto aponta sobretudo para dois caminhos: diversificação de rotas e de meios de transporte e uma maior vontade em potenciar regionalmente mais autonomia industrial e logística. Parte da vulnerabilidade tecnológica e sanitária europeia resulta deste binómio. Para agarrarmos todos os ajustes em curso na globalização, influenciando-a para melhor, precisamos de investir em fileiras industriais competitivas, redes logísticas seguras, mais produção endógena, negociar melhor com privados e outros Estados em defesa dos consumidores e da reciprocidade empresarial. Portugal tem em todas estas dinâmicas interesses em cima da mesa e bons atributos para ir a jogo. Só precisa de olhar para a grande fotografia da globalização.
Investigador.