"Extra! Extra! Político nomeia Magistrado!"
Consigo imaginar uma criança ardina a gritar o título deste artigo pelas ruas pestilentas de uma Paris pós-revolucionária. Poderia bem ser a manchete do primeiro exemplar do L"Ami du peuple, jornal do jacobino Marat, lançado em 12 de Setembro de 1789. Para ele, tal nomeação seria certamente uma afronta ao Espírito das Leis de Montesquieu, segundo o qual a promoção da liberdade depende da atuação independente e bem separada entre os poderes de um Governo, de um Parlamento e de uma Justiça. Um espírito que, desde então, se materializou no essencial das construções constitucionais do Atlântico Norte ao Japão, da Coreia do Sul ao Chile, passando pela Oceânia.
Ora, surpreendentemente, é nessa geografia que se multiplicam hoje exemplos de confusão de poderes, incluindo na União Europeia e em Portugal. A Transparência Internacional identificou 23 magistrados portugueses nomeados desde 2015 para cargos de confiança política no Governo, e seus gabinetes, e na administração pública. O Bastonário da Ordem dos Advogados alertou para "uma forma ainda mais extrema de governo dos magistrados que é a constante nomeação de magistrados". Os juízes portugueses sentiram necessidade de incluir no seu Compromisso Ético que "o juiz, para preservar a sua independência e imparcialidade, rejeita a participação em atividades políticas ou administrativas que impliquem subordinação a outros órgãos de soberania ou o estabelecimento de relações de confiança política". E todas estas preocupações alinham com os Princípios de Bangalore da Conduta Judicial, cuja implementação foi apoiada numa Resolução em 2006 do Conselho Económico e Social da ONU, de que Portugal faz parte. Neles se postula que "portas giratórias" entre a magistratura e cargos executivos e legislativos são inconsistentes com a independência judicial.
Urge, então, questionar: o que leva um político a nomear um magistrado para funções públicas? O seu mérito? Mas como, se não há concurso nem acesso público à avaliação do seu desempenho profissional? Quererá condicionar as magistraturas, dividindo-as? Ou há uma relação pessoal prévia? E de que natureza? Saltitaram juntos, romanticamente, numa mesa de um professor da faculdade de direito, enquanto festejavam a sua passagem administrativa nos anos 70? Trocaram informações que ajudaram às respetivas carreiras? Ou estará o político sujeito a chantagem, em virtude de acesso a informação privilegiada pelo magistrado? Quererá proteger-se por antecipação de futuros processos judiciais, visto que o magistrado voltará à sua carreira depois de um novo governo tomar posse? Ou foi um pedido de um velho colega de faculdade, ou da sua família?
Não há boas respostas a estas perguntas. Nem manchetes de jornais. Nem perguntas de deputados. Nem clamor social. Mas o tema ganha relevância estratégica quando nos confrontamos com a ascensão de alternativas políticas e filosóficas onde a separação de poderes não passa de letra pequena - dentro e fora da União Europeia.
Nestes dias, só há uma forma de terminar este artigo - citando Jorge Sampaio: "Não sei como será o mundo daqui a cinco ou a dez anos. Mas espero que possa olhar para trás e perceber (...) que conseguimos preservar os valores da democracia, dos direitos, da liberdade e da tolerância em que acreditamos". Nesse combate de trincheiras que se avizinha, só a autoridade moral de quem defende a integridade das conquistas civilizacionais dos últimos 200 anos nos dará vantagem competitiva. Infelizmente, há quem persista em desbaratá-la.
Colunista