Elevador da Glória. Confirmado descarrilamento de responsabilidades

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Quando, dias depois do acidente que matou 15 pessoas, escrevemos aqui que o descarrilamento do Elevador da Glória era também um descarrilamento de responsabilidades, tinha apenas sido divulgada uma primeira avaliação do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes Aéreos e Ferroviários (GPIAAF). Várias perguntas não tinham resposta. Quem supervisionava, quem inspecionava, quem decidia.

O relatório preliminar divulgado nesta segunda-feira pelo GPIAAF, a autoridade nacional que investiga acidentes ferroviários, responde a parte dessas dúvidas e confirma o essencial. O desastre não foi apenas mecânico. Foi institucional. Foi sistémico. A rutura do cabo que ligava as duas cabinas expôs falhas graves de controlo da Carris e um vazio de supervisão que o Estado nunca resolveu.

Do que está escrito é possível concluir que há falhas que podem ter começado dentro da Carris e depois propagaram-se pela ausência de fiscalização pública. O cabo que unia as duas cabinas, e cuja rutura causou a tragédia, não cumpria as especificações técnicas da própria empresa. Não estava certificado para transporte de pessoas, e o certificado do fabricante avisava que não podia ser usado no sistema existente no elevador. A desconformidade não foi detetada nem travada.

Segundo o GPIAAF, há diversas responsabilidades que falharam. Desde a especificação, à aquisição, na receção e na aplicação de um componente crítico. Todos da competência da Carris. “A utilização de cabos multiplamente desconformes com as especificações e restrições de utilização deveu-se a diversas falhas acumuladas no seu processo de aquisição, aceitação e aplicação pela Companhia de Carris de Ferro de Lisboa (CCFL), cujos mecanismos organizacionais de controlo interno não foram suficientes ou adequados para prevenir e detetar tais falhas”, é escrito.

Sobre a manutenção, lê-se que há tarefas registadas como cumpridas que não correspondem ao que foi realmente feito. Outras, de importância vital, foram executadas “de forma não padronizada, com parâmetros de execução e validação díspares”. Mais: “As inspeções previstas para o dia do acidente e antecedentes estão registadas como executadas e pessoal do prestador de serviço esteve presente, mas as evidências não suportam o período horário indicado nas folhas de trabalho para a sua execução”.

Embora reconheça que não há ainda provas de que estas desconformidades possam ter tido impacto direto na rutura do cabo, o GPIAAF recomenda à Carris rever todo o sistema de controlo interno e implementar um verdadeiro sistema de gestão da segurança.

O relatório também aponta para o vazio institucional. Isto porque, como já tinha sido constatado no primeiro relatório de setembro, o Elevador da Glória não está sob a supervisão de nenhuma entidade pública, nem do Instituto de Mobilidade e Transportes, nem de qualquer autoridade técnica. É um transporte coletivo de passageiros que funciona sem fiscalização externa - uma omissão que acabou por abrir caminho ao colapso.

A investigação recomenda expressamente ao IMT que promova um quadro legislativo e regulamentar que assegure a supervisão técnica e a certificação de todos os funiculares e meios de transporte similares.

É uma recomendação óbvia e tardia. Este relatório preliminar não fixa culpas penais. Essa é tarefa do Ministério Público, que aguardaremos e não esqueceremos - foram 15 vidas o resultado desta cadeia de irresponsabilidades.

Ao apontar para responsabilidades institucionais, o GPIAAF evidencia o retrato de uma falência de sistema. Uma empresa pública que não controla o que compra, um Estado que não supervisiona o que transporta e uma cidade que confiou num símbolo sem garantir a sua segurança. A tragédia não foi inevitável. Estavam lá os sinais. Foi anunciada.

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