Dune: em câmara lenta, como na TV 

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Dunes! São como divãs, de certa maneira: uma pessoa instala-se confortavelmente durante umas horas, e deixa que cada filme vá revelando as suas ansiedades.

Os casos de estudo vão-se acumulando. 56 anos depois de ser publicado, o livro de Frank Herbert já leva quatro adaptações visuais (se contabilizarmos aquela que é famosa por não existir). Primeiro, ainda na ressaca lisérgica da sua década de origem, a visão megalómana de Jodorowsky - 14 horas, um orçamento estimado em duas folhas salariais do Paris Saint-Germain, e a sua característica mistura de charlatanice, infantilidade, génio, e absoluta inviabilidade prática. Depois, a combinação blasfema de David Lynch e De Laurentis, responsável pelo Dune de 1984 - uma memorável barafunda sem pés nem cabeça (mas com sete braços, quinze barrigas, dezenas de genitais deformados, etc). O ano 2000 trouxe a mini-série do canal SyFy, uma telenovela chunga que foi, em muitos aspectos, a mais fiel ao texto - não só ao conteúdo, mas também à pedestre superfície verbal e aos patuscos arcaísmos dramáticos (Herbert era um génio imaginativo, mas também um canastrão e prosador medíocre). E agora o meio-Dune de 2021, realizado por MacBook Pro, usando um dos seus muitos pseudónimos contemporâneos, "Denis Villeneuve".

É um destino improvável para uma história tão agressivamente bizarra, mas também uma inevitabilidade comercial; se um livro vende doze milhões de exemplares, alguém vai pensar em vender duzentos milhões de bilhetes. Dune, como muitos clássicos dos géneros fantásticos, é uma história simples (e nada original) passada num mundo vasto, complicado e interessante. A fórmula "mini-Lawrence da Arábia descobre gradualmente que é o Super-Jesus do espaço" faz apenas metade do trabalho; o resto reside nas implicações e extrapolações da invenção - a especiaria mélange - que gera todo o universo criado por Herbert: imaginem um mundo em que o petróleo faz tudo o que o petróleo já faz, mas também o mesmo que LSD, cocaína, Viagra, poção mágica, e elixir da juventude; e que essa substância vem do esperma de minhocas gigantes, colhida por tribos de nómadas que vivem no deserto e bebem o seu próprio mijo. A chave da sua eficácia é que o livro existe numa sobreposição constante de melodrama piroso, profunda bizarria psicadélica, e portentosa solenidade existencial - e desde a primeira à última frase, nunca vacila, nem privilegia ou despromove qualquer um destes três modos.

Ora bem, há várias alternativas ao dispor de quem tencione "honrar" ou "respeitar" este material original, e como duas dessas tentativas foram consideradas fracassos em parte por terem privilegiado excessivamente a piroseira e a bizarria, não é uma surpresa que Villeneuve e a Warner Bros. tenham agora optado pela abordagem mais segura e impessoal, e feito um Dune Baunilha: o filme mais parecido possível com coisas que vemos regularmente.

O Messias da galáxia é interpretado por Tintin Giroflet, a quem as restantes personagens insistem chamar "Paul", mas que se chama claramente Francisco Atreides. A história de Francisco vai parando em quase todos os apeadeiros esperados: temos a cena do treino, a cena da mão na caixa, a cena do primeiro verme, a cena da fuga no deserto. Esporadicamente, Francisco é filmado a olhar o horizonte; noutras ocasiões, tem visões proféticas de trailers da sequela, invariavelmente filmadas em câmara lenta, como anúncios a água-de-colónia.

Os espaços pelos quais se move são também intensamente familiares. A estética geral é "vamos-filmar-barragens-num-dia-nublado". Cada nave é uma colossal forma geométrica cinzenta, cada edifício é um colossal bloco de cimento, cada sala é um colossal claustro monástico mal iluminado. Cinematografia e direcção de arte fazem todos os esforços para não marginalizar um único membro da comunidade daltónica. As tonalidades cinzento & papa maizena são adequadas à aridez de Arrakis, mas não há qualquer medida de contraste - nem a mínima tentativa para imaginar as realidades estéticas diferentes (por preferência e por inércia) de aristocracias decadentes no fim de um império, dez milénios no futuro. A única diferença entre os espaços interiores dos Harkonnen e dos Atreides é a quantidade de luzes acesas. Até o planeta-natal destes últimos (descrito no livro como um Éden luxuriante) é reduzido à mesma paisagem pseudo-islandesa que significa "planeta alienígena" em qualquer filme desde 2008.

Por cima de tudo isto, a trilha sonora de Hanz Zimmer, a fazer o seu número habitual (que já afligiu Blade Runner 2049 e múltiplos Nolans): vozes a ganir etnicamente, enquanto alguém tenta afogar vuvuzelas no rio. É um zumbido permanente cuja função é transmitir duas mensagens ao espectador: 1) "as coisas podem estar meio paradas, mas não deixam de ser extremamente épicas"; e 2) "Cinema!"

A ideia que fica de tudo isto é que houve duas prioridades - uma artística, outra comercial - mais importantes que qualquer "fidelidade" espiritual à história e ao livro, e ambas compreensíveis: dar uma imagem de grandiosidade, e não ser ridicularizado.

Este Dune é certamente grandioso, ou pelo menos grande, e há sempre algo louvável no desejo de criar imagens monumentais. Se aquilo que queremos é um filme com "bom aspecto", que traduza competentemente o essencial da história, e que proclame a sua ambição no mero facto de existir, acharemos que a tarefa foi cumprida. Mas não deixa de ser desmoralizante que equipado com 165 milhões de dólares e um dos livros mais esquisitos do séc. XX, o produto final seja um anúncio de duas horas e meia da Dolce & Gabbana.

A versão de Lynch - renegada pelo próprio - continua a ter os seus adeptos, alguns cada vez menos tímidos. Alguma da reabilitação talvez seja excessivamente entusiástica: o tempo e a distância ajudam a atenuar a diferença entre o que eram excentricidades imaginativas e o que eram apenas escolhas erradas, absurdas ou incompetentes. Quem o veja hoje, com músculos contemporâneos treinados para a imersão anestesiante, vai encontrar demasiadas fricções.

Mas o tempo e a distância também produzem o efeito oposto. O Dune de 1984 é, sob qualquer critério, um "mau" filme. Mas mesmo quando são "piores" a quase todos os níveis, histórias visualizadas por uma cabeça muito esquisita terão sempre mais motivos pontuais de interesse do que histórias recriadas por uma comissão executiva muito competente. Lynch deu-nos lábios manchados com Sapho, e sobrancelhas farfalhudas, e Sting com cuecas de metal, e máquinas que esmigalham bichinhos para fazer sumos, e bexigas gigantes que viajam em aquários, e nomes que fazem pedras explodir, e bebés carecas que falam com voz de bagaço. Villeneuve (à excepção de uma aranha doméstica que é o melhor e mais surpreendente momento do filme) dá-nos competência tecnológica, fotografia aérea, e um catálogo da Moda de Milão.

As reacções colectivas a produtos de entretenimento de massas não são determinadas por um somatório de sensibilidades individuais: há hábitos colectivos - resultado de treino, de condicionamento, até do acaso. As últimas duas décadas de blockbusters prepararam mais espectadores que nunca para as convenções próprias dos géneros fantásticos, mas também recalibraram as suas expectativas: há menos disponibilidade para excentricidades e para o tipo de arrojo que costuma tactear os limites do ridículo; a exigência maioritária é a de uma experiência "imersiva", sem atritos granulares. A elevação do nível médio de competência técnica também apurou o sentido do ridículo; a consequência dupla é que há menos filmes realmente maus, e menos obras-primas.

Tudo isto é maior do que qualquer realizador individual, e nenhum Eleito vai encontrar a síntese mágica. Ao contrário de Francisco Atreides, Villeneuve não é o Messias. Nem sequer é um rapaz muito maroto. É um funcionário competente e profissional, sobrinho do sr. presidente, bem educado, simpático. Passou algum tempo na Ásia a "explorar o mundo" e a "descobrir-se a si próprio". Sempre foi muito sensível e talentoso, os professores sempre o disseram, tal como a madrinha. Quando regressou das suas viagens, trouxe um portefólio com as suas melhores fotos, e quer que a gente as veja, uma a uma. Se fosse ineptas seria um choque, e não são. Se fossem geniais, seria um choque, e não é. São todas muito bonitas. É moderadamente agradável vê-las, especialmente em câmara lenta. Daqui a trinta anos ninguém se vai lembrar que existem.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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