Deus, pátria e família à Bolsonaro
Durante os quatro anos de Jair Bolsonaro no poder, brasileiros (ou portugueses) chegavam a ser acordados ao nascer do sol – o que já seria suplício suficiente – por manifestações pró-presidente com gritos de guerra como o salazarento “Deus, Pátria, Família” – o que já é um suplício intolerável.
Como se sabe, essa gente foi apeada do poder a 30 de outubro de 2022 mas, à primeira distração, volta sempre das trevas, como nesta semana, nos casos “Jorginho Mello”, “Landulpho Alves” e “padre Lancelotti”.
O padre Júlio Lancelotti, 75 anos, milita há mais de 40 pela população pobre da cidade onde nasceu, São Paulo, o que tornou o seu trabalho reconhecido mundo afora.
No contexto nacional, recebeu distinções da Ordem dos Advogados do Brasil, do Movimento Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, da Câmara dos Deputados e da Presidência da República pela coordenação da Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de São Paulo.
No contexto internacional, mereceu ligação telefónica do Papa Francisco, em 2020, a pedir-lhe que não desanimasse, apesar de todas as dificuldades, e continuasse a ajudar, hoje, os dependentes de crack, na Cracolândia, uma região paulista que é o inferno na Terra, como ajudou, nos anos 80 e 90, os infetados com HIV.
Este currículo, claro, irritou a extrema direita: o deputado estadual Rubinho Nunes, um dos fundadores do MBL, o movimento de rua que ajudou a destituir a eleita Dilma Rousseff, e a elevar ao poder Michel Temer que, qual João Batista às avessas, precedeu Jair Bolsonaro, o Messias ao contrário, instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito contra Lancelotti.
“Vou investigar a máfia da miséria na cracolândia”, disse Rubinho, cuja campanha foi financiada por empresários do setor imobiliário desejosos de varrer os toxicodependentes das ruas – ou, da face da terra, de preferência.
No mesmo dia, a Controladoria Geral da União, organismo que vigia eventuais danos ao património público, detectou a venda, na Era Bolsonaro, da refinaria estatal Landulpho Alves, na Bahia, por 1,65 mil milhões de dólares abaixo do preço de mercado.
O negócio, entretanto, pode não ter sido fruto, apenas, da lendária e grosseira incompetência daquele governo: os compradores, a família real dos Emirados Árabes Unidos, são os mesmos que ofereceram ao Brasil um relógio cravejado de pedras preciosas e três esculturas de ouro, prata e diamantes que Bolsonaro terá metido ao bolso.
No dia anterior, o governador bolsonarista, Jorginho Mello, do mais bolsonarista dos estados, Santa Catarina, considerou que o cidadão mais competente de entre todos os 7,2 milhões de catarinenses para assumir a pasta de secretário da Casa Civil do estado era Filipe Mello, o seu filho. “A nomeação do novo secretário da Casa Civil se deve ao seu próprio mérito e à competência comprovada”, justificou uma nota assinada pelo governador de Santa Catarina (e pai de Filipe).
Estes três casos, todos já de 2024, mostram que a seita, embora já não nos acorde aos gritos de madrugada, continua fiel ao lema: por Deus, desde que Ele, na pessoa do padre Lancelotti, não ajude os necessitados mas venha, pela ação do deputado Rubinho, em auxílio dos milionários; pela Pátria, mas aquela com sede em Abu Dhabi, claro, não a brasileira; e pela Família, a nossa, só a nossa, como defendem os Mellos de Santa Catarina.