Cultivar a memória na feira de velharias

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No sábado visitei uma feira de velharias, um prazer que cultivo há muitos anos, sempre na esperança de encontrar nas sobras de outros colecionadores aquilo que para mim é um tesouro. Sendo péssimo a regatear, ganhei o hábito de estipular um valor máximo que estou disposto a gastar para evitar compras por impulso e, já agora, para salvaguardar o pouco espaço que sobra na arrecadação lá de casa.

Desta vez, o que mais me chamou a atenção nem sequer era um objeto volumoso – tratava-se de um simples conjunto de dez postais, com imagens de ciclistas portugueses da década de 70. Graficamente irrepreensíveis, com cores garridas que chamavam a atenção, mas já com várias marcas de desgaste. O problema era o preço: 20 euros. Tentei baixar um pouco o valor e até me mostrei interessado em comprar apenas algumas unidades, mas o vendedor estava irredutível e não queria destruir o lote. Não consegui deixar de lhe perguntar se, realmente, tinha esperança de, um dia, vender os postais, tendo em conta que, com o passar dos anos, seriam cada vez menos as pessoas que conheciam aqueles protagonistas. Talvez admirado com a pergunta, respondeu-me que tinha razão, que as gerações mais novas procuravam sobretudo produtos eletrónicos, mas ainda assim mantinha a esperança de encontrar o colecionador certo, “com memória” para apreciar aquele lote e disposto a pagar o que considerava ser um preço justo.

Não trouxe os postais para casa, mas acompanhou-me esta ideia de a memória coletiva estar a perder-se a um ritmo cada vez mais acelerado. Se para o vendedor de velharias isso pode ditar alguns clientes a menos, a verdade é que há consequências bem mais gravosas a jusante.

Nos Estados Unidos, agora que o patrão da Tesla se entretém a desmantelar os serviços federais, cortando milhares de postos de trabalho a uma velocidade superior à dos seus foguetões da SpaceX, já é quase ‘pré-história’ a imagem de Elon Musk a fazer o que parece ser uma saudação nazi (o multimilionário nega-o) após a tomada de posse de Donald Trump. Em Itália, um tribunal de Milão recusou condenar um grupo de 23 militantes de extrema-direita, considerando que a saudação fascista que estes fizeram durante uma cerimónia em memória de Sergio Ramelli (assassinado em 1975, por motivações políticas) se tratou apenas de uma “homenagem” e não um crime de difusão de ideologia fascista. E na Alemanha, os resultados das Legislativas de domingo confirmaram a forte subida da AfD, de extrema-direita, que é agora a segunda força política do país, com 152 deputados (mais 69 do que nas últimas eleições, em 2021).

É caso para dizer que, de facto, hoje, o mundo precisa ainda mais de estadistas à imagem do vendedor de velharias que conheci no sábado, que sirvam como faróis de memória para gerações futuras e que nos recordem os perigos de regressar a um passado sombrio, sempre que o tentamos esquecer ou reinterpretar.

Editor Executivo do Diário de Notícias

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