«A discriminação racial atinge diretamente o cerne do Estado de Direito, por comprometer a igualdade e a dignidade que devem ser salvaguardadas pela lei. Persistir em tratar estas matérias como simples infrações contraordenacionais é perpetuar a impunidade e desvalorizar os princípios constitucionais que formam a base da nossa ordem jurídica.»Este é o centro da argumentação contida no texto da «iniciativa cidadã» que propõe a criminalização de actos racistas e xenófobos, entre outros de natureza e implicações discriminatórias de que aqui não trato. O chamado Direito de mera ordenação social, que tipifica contraordenações, sancionadas com coimas ou outras medidas punitivas mas nunca com privação da liberdade, foi criado para deixar de fora do Direito Penal factos de gravidade menor ou pelo menos causadores de mais leve censura social do que os crimes. Permitia também o sancionamento de pessoas colectivas (sociedades comerciais, por exemplo) o que à data (1982) não era possível no Direito Penal propriamente dito. Muita coisa se foi alterando e as sanções hoje passíveis de serem aplicadas a pessoas colectivas podem atingir valores muito significativos, como recentemente foi notícia sobre alguns casos.Em 1948, no rescaldo do horror dos crimes contra a Humanidade cometidos durante a chamada II Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamou, na senda da Carta das Nações Unidas, os princípios básicos de dignidade e igualdade entre todos os seres humanos. A força vinculativa que fazia falta veio com os dois Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, em 1966.Muito cedo a ONU percebeu que certas áreas mais problemáticas ou grupos populacionais particularmente vulneráveis precisavam de protecção acrescida, especializada. E assim começa a produção de Convenções que incidem sobre alvos precisos e pré-determinados.A primeira dessas Convenções é justamente a ICERD, acrónimo de «Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial», de 1965. Anterior, portanto, mesmo aos dois referidos «Pactos». Porquê? Porque os horrores do Nazismo, do Fascismo e do Colonialismo – que também com eles conviveu e se misturou - estavam a tornar-se demasiado conhecidos, senão mesmo óbvios, e condenados como protótipos de discriminação de raiz essencialmente étnico-racial para poderem ser esquecidos na legislação internacional. Por razões em alguma medida paralelas, a Convenção sobre o Genocídio (1951) e as chamadas Convenções de Genebra (1949) já se tinhamantecipado no plano internacional. Assim como os julgamentos de Nuremberga e Tóquio – que não tiveram, na verdade, equivalente histórico em tribunais com jurisdição internacionalmente reconhecida sobre os crimes do Colonialismo.Portugal atrasou-se no início da descolonização. O Estado Novo insistiu no«Para Angola e em força» e, entre 1961 e 1974, tentou manter o seu domínio anacrónico sobre as Colónias que insistia em chamar «Províncias Ultramarinas». O preço foi altíssimo em vidas humanas e atraso na libertação e autodeterminação dos povos colonizados, apesar das insistências e condenações da ONU, que Portugal se recusava a cumprir.A Constituição da República de 1976 deu forma jurídica ao regime saído daRevolução que se inicia com o golpe militar de 25 de Abril de 1974. É clara a preocupação da Constituinte com o resguardo contra o «fascismo» e o«racismo». Recebendo como instrumento interpretativo privilegiado a DUDH, aceitando a recepção directa do Direito Internacional devidamente aprovado e ratificado, proíbe partidos políticos e organizações de carácter fascista ou racista. O Direito Penal, dizemos nós, cultores desta área, e assim mesmo impõe aprópria Constituição, só deve intervir em matérias em que seja necessário e provavelmente eficaz. Será o caso das manifestações de atitudes racistas ou xenófobas que se traduzam em palavras, em actos, em decisões ou exclusões discriminatórias? A informação que resulta do inquérito do INE (ICOT, 2023) indicia uma alta percentagem de discriminação sofrida entre a população residente em Portugal. As notícias recorrentes de actos de violência de conotação racista contra negros, ciganos ou contra membros de outros grupos étnico-racialmente conotados como ‘diferentes’ ou ‘minoritários’ por contraposição aos chamados «brancos», a vulgaridade de insultos e a repetição de violência oficial – pelas forças de segurança, pela atitude de alguns juízes, etc – torna por demais evidente que a relevância da ausência de membros representantes dessas populações em posições de poder de decisão política, económica ou académica, precisa de ser levada mais a sério. O Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025, intitulado «Portugal contra o Racismo», elaborado na sequência das sugestões do Grupo de Trabalho que ao longo de meses contribuiu pro bono para a sua redação, reconhece o carácter estrutural e sistémico do racismo em Portugal, pela mão de membros do Governo de então, logo no início do documento. Mas das muitas medidas que o Plano propõe, pouco ou muito pouco terá sido cumprido e executado. O mesmo se poderá aliás dizer das Recomendações da ECRI, a agência que lida com a discriminação e a intolerância no âmbito do Conselho da Europa.Criminalizar o Racismo para além dos limites estreitos do actualmente previsto no Código Penal, que cumpre de forma limitada o imposto pela ICERD, livremente assinada e ratificada pelo Estado português, é um passo que terá de ser dado para contrariar de forma mais eficaz, dissuadindo-a, a prática comum de agressões directas às pessoas em aspectos fundamentais da sua vida e dignidade. Provavelmente encontrará muitas resistências. A ilusão sobre a inexistência ou a irrelevância do racismo em Portugal perdura, apesar de tanta demonstração em contrário. Em meu entender, o reconhecimento da gravidade extrema dos actos racistas, que se traduz na sua criminalização efectiva, é também uma pequena mas relevante contribuição para a «indemnização moral» aos povos colonizadose escravizados pelo Império português. E uma forma tardia mas ainda válida de reconhecimento da contribuição essencial dos Movimentos de libertação das Colónias para o fim da Ditadura do «Estado Novo». É mais um passo na descolonização que Portugal tardou em iniciar e que continua incompleta, apesar de tanta declaração e convicção em contrário.