As recentes declarações de Donald Trump em plena campanha para as primárias do Partido Republicano, com vista à designação do futuro candidato presidencial, deixaram a comunidade ocidental, em especial os aliados europeus, em choque, senão mesmo em pânico. A possibilidade da não ativação do Art.º 5º do tratado de Washington, em face duma agressão russa a um país aliado, se esse país não atingisse o gasto na Defesa de 2% do seu PIB, conforme todos se comprometeram em diversas Cimeiras, criou um sentimento de insegurança que foi manifestado por quase todos os aliados e pelo próprio secretário-geral da OTAN. E esta insegurança resulta de que a decisão para a ativação desta cláusula de segurança, e apoio a um aliado sujeito a uma agressão, terá de ser tomada por consenso de todos os aliados, ao nível do Conselho do Atlântico Norte. O espírito do art.º 5º, e do próprio tratado, nunca foi sujeito a qualquer fenómeno interpretativo ou condicional de qualquer natureza, bastando a circunstância da agressão (ou da ameaça iminente) para serem desencadeados os mecanismos de Defesa Coletiva. Em cerca de cinquenta anos de Guerra Fria, entre o Ocidente e a União Soviética, nunca este mecanismo foi desencadeado, só o tendo sido uma vez, já após o final da Guerra Fria, aquando dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, que ocorreram nos EUA..Conhecemos as diversas declarações de Donald Trump, quando era p1residente, sobre o subfinanciamento da Defesa em muitos países europeus aliados, e que têm sido reafirmadas, ultimamente, de forma bastante assertiva e muito pouco diplomática. Isto tem sido um choque para a comunidade transatlântica duma forma geral, e para os aliados europeus em particular, habituados que estamos a viver em segurança fruto do chapéu de chuva americano, seja na sua vertente nuclear seja na vertente das robustas e adequadas capacidades convencionais, que só os Estados Unidos têm. Esta acomodação foi levada ao limite após o final da Guerra Fria, em que os famigerados dividendos duma paz, que julgámos (não todos, naturalmente) eterna, conduziram a um desinvestimento europeu na sua própria segurança, em prol de outras prioridades de ordem económica e social, com a predominância da Geoeconomia em detrimento da Geopolítica. O aviso à navegação feito pelos Estados Unidos sobre esta realidade não é de agora, tendo o presidente Obama, em diversas cimeiras da OTAN, criticado os governos europeus aliados por estes não assumirem os seus compromissos no âmbito da Aliança Atlântica, nomeadamente os famosos 2% do PIB a serem investidos em defesa, especialmente em capacidades militares..O choque de realidade a que a guerra na Ucrânia expôs os europeus, não só sob o ponto de vista da materialização duma ameaça real: a Rússia, mas, também, da incapacidade para apoiar militarmente o país invadido, por falta de recursos militares suficientes, fez soar as campainhas sobre a incapacidade da Europa se defender sozinha, caso o aliado americano não quisesse ou não tivesse a possibilidade de nos apoiar, fruto de empenhamentos militares e prioridades noutras geografias. Os sinais sobre as alterações das prioridades estratégicas dos EUA têm vindo a ser dados há muito. Mas a perspetiva (muito confortável para os europeus) duma Rússia “amiga”, europeia e carregada de gás e petróleo baratos, manteve-nos adormecidos, sob o ponto de vista estratégico e de segurança, mesmo com o que se passou na Geórgia em 2008 e, na Ucrânia, com o Donbass e a Crimeia, em 2014..Embora as elites políticas norte-americanas não tenham, dum modo geral, posto em causa a importância estratégica da área euro-atlântica, onde se aplica o Tratado de Washington, têm surgido nos últimos anos correntes geopolíticas e geoestratégicas que elencam outras duas áreas prioritárias. Uma é o Indo Pacífico, cuja segurança pode ser colocada em causa por uma ameaça da China, e a outra é a fronteira sul dos Estados Unidos, cuja insegurança é fruto duma emigração ilegal descontrolada, com a possibilidade do México se tornar, a prazo, um estado falhado. O governo mexicano já perdeu o controlo de algumas áreas na fronteira, onde quem dita a lei são os grupos armados ligados ao narcotráfico. Estas correntes de opinião (lideradas, entre outros, por Stephen Walt e John Mearsheimer, dois académicos norte americanos muito críticos das suas elites diplomáticas e adeptos da visão realista nas relações internacionais) que insistem que os EUA devem abandonar de vez o Médio Oriente e que a segurança europeia deve ter maior responsabilidade dos europeus. A isto, podemos juntar a visão de muitos americanos, de que a grande maioria dos europeus não estará disponível para apoiar os EUA num confronto militar com a China, quando este venha a ocorrer. A estas visões aliam-se as de correntes nacionalistas americanas, apoiantes de Trump, cuja principal (e única, nalguns casos) preocupação de segurança é a imigração ilegal, não havendo lugar a que os EUA tenham outras preocupações estratégicas fora do continente americano, dando corpo a correntes isolacionistas em termos de política externa, que são cada vez mais fortes..Estamos, assim, numa zona de crise das relações transatlânticas se Donald Trump vier a ser o próximo presidente dos EUA. Claro que as correntes mais atlantistas do Partido republicano, que existem, farão enorme resistência a uma possível, mas difícil, decisão de desacoplar estrategicamente a América do Norte e a Europa. Mas aqui terá de entrar a moeda de troca dos europeus, que terão de investir mais em Defesa, e de, por um lado, assegurarem a parte mais relevante do esforço militar, numa guerra na Europa contra a Rússia e, por outro, manifestarem disponibilidade para um apoio aos EUA em operações no Indo Pacifico (que na minha visão, diga-se de passagem, é também estratégica para os europeus). A segurança da área euro-atlântica terá de continuar a ser una e indivisível, pois não é possível assegurá-la de forma parcelar, muito menos com o critério de que só está seguro quem investir no mínimo 2% do PIB na defesa. A OTAN deverá tender para ser a principal garantia de Segurança da ordem liberal e democrática, que urge defender e preservar, numa nova guerra fria que se antevê entre democracias e autocracias. Foi esse o espírito que permitiu as parcerias estratégicas especiais com a Austrália, o Japão e a Coreia do Sul, entre outros. Com isto não quero dizer que se devam expulsar da OTAN parceiros, com sistemas democráticos mais fracos, nem que sejam de descartar parcerias estratégicas com atores ou organizações “menos” democráticas, sempre que as realidades geopolíticas e estratégicas a isso aconselhem, mas sempre dentro de critérios transparentes e aceitáveis..A OTAN deverá continuar a ser o eixo da roda da parceria entre europeus e norte americanos e canadianos, no conceito expresso pelo saudoso Prof Adriano Moreira. O eixo da roda não mexe, pois é aí que assentam os princípios e valores da preservação do sistema liberal e democrático mundial, que é o modelo de vida que queremos preservar. Se não for este o cimento que nos une, poderemos ter o eixo transatlântico em risco de fratura, com seríssimos impactos para todos. E esta é uma responsabilidade para hoje, não para amanhã, que poderá ser já tarde demais.