Café da manhã, mata-bicho e pequeno-almoço
Em finais do ano passado, num avião para Seattle, enquanto conversava com a pessoa que ia ao meu lado, e também com outra que ia num dos bancos da fila da frente, fui interrompido por um passageiro americano, que perguntou em inglês: “Peço desculpa por incomodar, mas estou a ouvi-los e fiquei curioso. Que língua estão a falar?” Sorri e respondi que era português. Mas que vínhamos de vários países. Ao meu lado estava um são-tomense, e na fila da frente um brasileiro. E que éramos uma dúzia, espalhados pelas filas próximas, que incluía ainda moçambicanos, angolanos e até um timorense. Para aumentar mais o efeito, sublinhei que representávamos seis países, de quatro continentes. Percebi a surpresa. “Não fazia ideia de que tantos países falavam português”, disse.
O episódio só foi possível porque estávamos num curso sobre o sistema político americano em que os participantes eram todos de países lusófonos. Alguns, como eu, já conheciam os Estados Unidos, para outros era a primeira vez lá. Mas foram, para todos, três semanas de descoberta, por um lado, da diversidade americana (eram os dias finais da era Biden e já se adivinhava a vitória de Trump), visitando Washington, Louisville, Nova Orleães e Seattle, por outro, do tanto que une a língua portuguesa. E como Portugal, de certa forma, ainda é o centro desse mundo lusófono, mesmo que o gigante Brasil tenha mais de dois terços dos quase 300 milhões de falantes. Afinal, um dos são-tomenses nunca mais deixou de ouvir fado de Coimbra desde que andou lá na universidade, o angolano torce pelo FC Porto, a angolana cresceu em Lisboa, o timorense tem a filha a estudar em Aveiro, uma das moçambicanas pensa fazer doutoramento numa universidade portuguesa, e um dos brasileiros apareceu um dia vestido com as cores do Vasco da Gama, o clube criado pelos imigrantes portugueses no Rio de Janeiro, gente como o seu avô. Fiquei a saber que a par do hino oficial, que fala do navegador e da amizade Brasil-Portugal, há um outro em que a torcida canta “Dá-lhe, bacalhau! A gente vai ser campeão! Dá-lhe, bacalhau! É mais um gol pro meu vascão!”
Foi pena o grupo não contar com cabo-verdianos e guineenses. Seria ainda mais divertido o jogo de descobrirmos o que dizíamos de forma diferente, pouco comparado com o tanto que dizemos igual: por exemplo, o pequeno-almoço, que se diz em Timor-Leste como cá, mas é o café da manhã no Brasil e o mata-bicho em Angola.
“Me fascinei pelo colonialismo português, pelo mundo lusófono, que é o primeiro global village”, disse-me um dia, num português com a doçura dos trópicos, o sueco Henrik Brandão Jönsson (o Brandão é da ex-mulher brasileira). E contou, numa entrevista ao DN, como descobriu, numas férias em Cabo Verde, esta curiosa afinidade entre gente que fala português, por vezes a muitos milhares de quilómetros de distância: “Quando cheguei a São Pedro, uma aldeia de São Vicente, estava a haver uma manifestação de cabo-verdianos para celebrar a saída da Indonésia de Timor-Leste. Pensei: ‘Um povo aqui tão longe, celebrando?’ Então, houve uma menina que me explicou: ‘A gente faz parte do mundo lusófono.’ Não sabia o que era lusófono.”
Sim, sinto fascínio pela língua portuguesa. Que é a minha e de tanta gente. Que me permite entrevistar o Nobel da Paz José Ramos-Horta num final de tarde em Díli, ou conversar em Pangim com Maria de Lurdes Filomena Figueiredo de Albuquerque, que foi deputada à Assembleia Nacional, ou falar com o chefe de aldeia na ilha de Soga, nas Bijagós. E perceber para onde vai o autocarro que apanho na rua macaense.
Na segunda-feira, 5 de maio, celebrou-se o Dia Mundial da Língua Portuguesa. É uma língua que pertence a muitos povos, de diferentes latitudes. “O Amílcar Cabral citava Camões aos seus guerrilheiros”, contou-me um dia Manuel Alegre. E há dois dias, Xanana Gusmão, numa cerimónia para assinalar a data, dizia aos timorenses: “Aos pais e mães, peço que incentivem os vossos filhos a aprender português, porque, segundo a nossa História, é o português que representa a nossa identidade, não o inglês, nem o indonésio”. Aliás, o cardeal de Díli terá muita companhia para conversar em português no Conclave que hoje se inicia, pois são 14 os lusófonos presentes, contando o goês.
Mas não é só nas antigas colónias que a língua portuguesa deixou marcas. Estas podem ser fortes, como no papiamento, o crioulo falado em Curaçau, ou apenas palavras soltas, como no bahasa, no hindi ou no japonês, mas não deixa de ser curioso como “boneka”, “almaari” ou “kopu” têm raízes nos nossos boneca, armário e copo.
Voltando à tal dúzia de lusófonos que se conheceram no curso nos Estados Unidos, pode só ter sido uma grande coincidência a afinidade, um grupo de pessoas que se deram bem, gente entusiasmada por um projeto aliciante num país fascinante. Mas não tiremos mérito ao idioma partilhado. Como o americano sentado perto de nós no avião para Seattle viu, conversávamos e muito. Tanto e tanto que falámos nesta língua portuguesa que partilhamos. E que tanto atrai, ao ponto de fascinar gente como a indiana que traduziu Mensagem para hindi, que com o sotaque adquirido nos anos passados no Rio de Janeiro me contou que tinha dedicado a tese de doutoramento aos palavrões do português.
Existem várias teorias sobre o valor económico de um idioma, e vale a pena refletir sobre isso quando se pensa em oportunidades para o país. O português merece bem este Dia Mundial criado pela ONU, que deveria, aliás, incluí-lo nas línguas oficiais.