Le feu qui semble éteint souvent dort sous les cendresQui ose l’éveiller peut s’en laisser surprendreCorneilleNo mundo em que vivemos sentimos que todos os ideais que trouxemos da juventude, nós, os mais velhos, se encontram desvalorizados e numa vertiginosa quebra de cotação.Não quer isto dizer que as novas gerações sejam de todo alheias a uma ideia de solidariedade e de dever social, que não é de esquerda, nem de direita, contrariamente à histeria ideológica vigente, e que a ideologia economicista dominante procura condenar e afastar (“O único dever social de uma empresa é dar lucros aos seus acionistas” - Milton Friedman), para criar um mundo individualista radical, onde quem ganha (ou herda) tem tudo e quem não ganha, nem herda, nenhuma ajuda ou apoio irá ter.E é curioso para mim, velho socialista de esquerda, ver como tantas pessoas de direita se começam a afastar com repugnância do caldeirão dessa poção mágica de ideias feitas à medida do egoísmo humano. Como é doloroso ver a adesão de pessoas que se diziam ou dizem de esquerda a essa mesma sopa de pedra.Parece que é moderno. Pôr os trabalhadores mal pagos e sem garantias era o que se fazia no século XIX, no capitalismo manchesteriano, mas parece que essas devem ser as ideias e os modelos do século XXI, ultrapassando o velho Marx em prol do moderníssimo Adam Smith. E sem esquecer o grande programa de Guizot: “Enrichissez-vous.”Têm feito por isso. A desigualdade entre ricos e pobres cresce exponencialmente. E antes que alguém lembre o que dizia o padre Lacordaire no século XIX: “Entre o rico e o pobre, é a lei que liberta e o mercado que oprime”, há que enfraquecer o Estado e as leis que possam ainda dar garantias aos trabalhadores, para que tudo venha a ser regulado pelos mercados.E o país arde, como poderíamos dizer com Fellini la nave va. Nestes tempos, os fogos deixaram de constituir o intenso psicodrama em que se viviam antes, passando a ser enfim uma rotina, paralela aos partos em ambulâncias e nas ruas, que já não desencadeiam as fúrias e paixões doutros tempos. Estamos todos mais blasés?Recordaria aqui uma passagem de uma das cartas de Camões, que afirma: “A dor dissimulada dará seu fruito, que a tristeza no coração é como a traça no pano.” A raiva não diminuiu, a dor não desapareceu, mas elas não encontram eco senão nas mentiras da extrema-direita populista, racista e fascizante. E toda a dor e a raiva dissimuladas, que não encontram ouvintes nem expressão, vão prosseguindo na destruição do pano da democracia pela traça da demagogia.Há aqui um imenso dever da esquerda, que nem preciso nomear.Diplomata e escritor