De quantas mais crises e de quantos mais relatórios internacionais precisaremos para perceber que temos de mudar de vida? Nem a crise de há dez anos - que culminou com o pedido de resgate, em 2011, e que só foi debelada com reformas políticas e com sacrifícios dos portugueses -, nem a gigantesca crise económica e social originada pela pandemia, nem a crescente descrença das pessoas na política e nas instituições, originou as mudanças, incluindo culturais, que seria legítimo esperar ao nível das propostas políticas dos partidos, da organização do sistema político, do funcionamento da democracia e da densidade do debate público..O governo limita-se a gerir e a comunicar e não lança, nem executa, reformas. Os partidos da oposição não arriscam a apresentação de alternativas e limitam-se a um registo de combate. Uns, e outros, limitam-se a aguardar pelas próximas eleições, ou pela melhoria da conjuntura internacional, ou pela mudança das regras da zona euro, ou pelo surgimento de novas bazucas de financiamento europeu ou, ainda, no limite, por um novo resgate económico-financeiro que, convenientemente, colocará o ónus das medidas difíceis nos credores e no governo que estiver de turno. Uns, e outros, parecem não perceber que é da sua inação que se alimenta o populismo e o radicalismo. Uns e outros desistiram de discutir, propor, negociar e executar as reformas políticas capazes de enfrentar os obstáculos estruturais que, há décadas, nos impedem de crescer: a dívida muito elevada, o baixo investimento público e privado, a baixa produtividade, as vulnerabilidades no setor financeiro, a elevada dependência energética e alimentar, o elevado peso da despesa pública, a elevada carga fiscal, a crise demográfica, a baixa confiança na justiça e nas instituições, as baixas qualificações, a reduzida mobilidade social e as gritantes desigualdades sociais e territoriais..Para que se perceba melhor a minha impaciência, nas últimas semanas surgiram novos dados que adensam este diagnóstico, sem que isso tenha tido grande repercussão pública..Primeiro, a Fundação Francisco Manuel dos Santos revelou que 20% das crianças estão em risco de pobreza e que mais de 10% dos portugueses, mesmo trabalhando, têm rendimentos inferiores ao limiar de pobreza..Segundo, no relatório da OCDE sobre o apoio, durante a pandemia, às PME, conclui-se que Portugal foi o país com o segundo menor esforço orçamental no apoio às empresas (3,6% do PIB) e com a segunda menor proporção de PME apoiadas (21,4%)..Terceiro, no relatório, coordenado por Fernando Alexandre, sobre a atribuição dos fundos europeus às empresas nos últimos 12 anos, conclui-se que o processo de seleção e de alocação de recursos foi ineficiente: mais de 40% dos apoios destinaram-se a empresas que não exportam; mais de 30% dos fundos foram canalizados para empresas que se mantiveram pouco produtivas..Quarto, o "Ageing Report" da Comissão Europeia agravou as projeções sobre o nível de pensões de reforma em Portugal: quem se reformar em 2040 terá direito a uma reforma equivalente a cerca de metade do último salário..Quinto, o último Eurobarómetro revela que a taxa de satisfação dos portugueses com a democracia, que já era das mais baixas da UE, desceu 16 pontos percentuais em menos de um ano, e apenas 12% esperam uma recuperação económica em 2021 ou 2022 (segundo nível mais elevado de pessimismo na UE)..Sexto, o relatório da OCDE sobre riscos conclui que 80% dos jovens portugueses têm grandes preocupações com a situação social e económica (quinto valor mais elevado dos países analisados) e 90% consideram que o governo não está a fazer o suficiente para responder aos seus problemas (segundo valor mais elevado)..Insisto, de quantas novas crises e novos estudos precisaremos para acordar desta caminhada sonâmbula? Não podemos desperdiçar a janela de oportunidade que se abrirá com o debate do próximo Orçamento do Estado e com os processos de normal clarificação interna nos partidos da oposição para que, na fase pós-covid, mais do que um mero recomeço, possamos verdadeiramente começar de novo..Presidente do think tank Plataforma para o Crescimento Sustentável