A Verdade continua por aí, com metade do tamanho
A veemente rapidez com que o público se desinteressou do programa de exploração espacial é uma das curiosidades sociológicas do séc. XX. J. G. Ballard costumava declarar que a "Era do Espaço" tinha durado pouco mais de quinze anos - entre o primeiro "blip" do Sputnik e a última expedição ao Skylab. Há margem para discutir as datas exactas, mas a atenção mediática mostra uma inegável curva descendente. Em Dezembro de 1972, três anos depois de a triunfante pegada de Neil Armstrong ter sido vista por milhões, a última missão Apollo tripulada não teve sequer honras de transmissão em diferido; as principais cadeias de televisão americanas decidiram nem comparecer à conferência de imprensa posterior, deixando o último ser humano a caminhar na Lua, Eugene Cernan, numa sala quase deserta, a falar para alguns representantes entediados da imprensa escrita.
A Era de Ouro dos OVNIs terá durado um pouco mais, mas chegou ao fim com igual falta de alarido. Um artigo publicado no The Guardian em 2004 (intitulado "What"s happened to weird?" nota o fenómeno, tentando associá-lo ao declínio de outros mercados do paranormal - fantasmas, o Bigfoot, o monstro do Lago Ness. O resto do texto parece um exercício de humor britânico, catalogando laconicamente as recentes dificuldades orçamentais de várias organizações dedicadas à investigação do inexplicável: a Sociedade de Pesquisa Psíquica deixou de receber relatos de aparições; a UFO Magazine foi à falência devido à quebra de subscrições, etc.
As modas, manias, pânicos morais, e receios apocalípticos do passado parecem sempre pitorescos aos olhos do presente. É difícil de imaginar hoje, mas durante boa parte dos anos da Guerra Fria, a histeria dos OVNIs era uma preocupação caucionada pelo mainstream, mesmo quando mantinha uma distância profilática das suas manifestações mais risíveis ou dos seus protagonistas mais exóticos. O certo é que, durante décadas, os objectos voadores não identificados ocuparam não apenas os nossos ecrãs de cinema e géneros literários, mas também os nossos jornais e noticiários televisivos, onde as suas peripécias incluíam o rapto regular de donas de casa divorciadas no Arkansas ou agricultores divorciados no Texas, a sedução de garimpeiros solitários no Brasil, e a exploração recreativa de vários orifícios de cidadãos da Austrália.
O pico de interesse popular e atenção mediática terá coincidido com a popularidade da série X-Files a meio da década de noventa (a TVI começou a transmiti-la por cá, com o título Ficheiros Secretos, em 1994). X-Files era na verdade, duas séries em uma. Metade dos episódios eram auto-contidos, e funcionavam quase como um dicionário de esoterismos interessantes. O espectro temático abarcava todo o pseudo-conhecimento que podia ser adquirido naqueles populares compêndios da Reader"s Digest (que se chamavam sempre qualquer coisa como Mundo Misterioso ou Fronteiras do Desconhecido): o incidente do Passo Dyatlov, o triângulo das Bermudas, o Yeti, o chupacabra, etc. A outra metade era dedicada à macro- mitologia: o arco narrativo que tentava construir alguma continuidade a partir da noção de uma conspiração antiga e hiper-competente entre uma civilização extraterrestre e uma secreta burocracia humana. O motor da série é o esforço para decifrar esta conspiração e a cena mais comum implica a visita de um dos protagonistas a um beco esconso ou a um parque de estacionamento subterrâneo, onde tem um colóquio frustrante com um homem de gabardine, semi-oculto nas sombras, que comunica exclusivamente através de aforismos incompreensíveis ("Quando procuramos a Verdade com demasiada força, Agente Mulder, arriscamos fazer cãibras nos músculos da Mentira").
A matriz cultural de gerações anteriores é emocionalmente inacessível, mas pode ser intuída pela pegada cultural que deixa. O melhor episódio de Ficheiros Secretos ("Jose Chung"s From Outer Space", da terceira temporada) parodia o célebre vídeo forjado de uma autópsia extraterrestre. Coincidentemente, um dos artefactos mais resplandecentes dos anos 90 - e um dos índices mais rigorosos do abençoado estatuto dessa década (talvez a última sobre a qual é possível manter a ficção de que as "décadas" têm uma identidade cultural própria e suficientemente coerente para conceptualizar) é o debate sobre essa autópsia a que a RTP dedicou duas horas do horário nobre, numa noite de semana, em Setembro de 1995. Agregando um notável aparato de seriedade (com a presença em estúdio de dois professores catedráticos, e o uso abundante da expressão "professor catedrático") o programa começa com um anúncio solene do jovem José Rodrigues dos Santos: "Boa noite. Se for verdade, é a notícia do século. Se for mentira, é a fraude do ano". O vídeo completo pode ser visto no YouTube e é uma relíquia essencial daquele período, uma relíquia tão ou mais cómica que a paródia posterior feita por Herman José.
Relíquias são praticamente tudo o que resta daquele caldo cultural específico. Na transição para o séc. XXI, algo inexplicável aconteceu ao inexplicável. O número de aparições celestes diminuiu em proporção inversa à acessibilidade de meios técnicos cada vez mais sofisticados para as registar - e também, curiosamente, à disponibilidade das autoridades oficiais para falar abertamente sobre o assunto.
Uma das notícias mais desinteressantes de 2020 foi a divulgação de três vídeos mostrando encontros imediatos entre aviões da marinha americana e objectos voadores não identificados. A marinha confirmou a veracidade dos vídeos e confessou a sua perplexidade: as imagens mostram comportamentos que não se coadunam com a tecnologia conhecida nem, num dos casos, com as leis da Física. O caso mereceu uma manchete no New York Times, e foi tendência no Twitter durante - bem, durante aproximadamente duas horas, antes de ser substituída por uma novidade pandémica ou por qualquer coisa extremamente invulgar dita naquele dia pelo anterior Presidente dos Estados Unidos. Ninguém quis saber. O tweet mais popular sobre todo o episódio foi uma piada: dizia qualquer coisa como "tenham paciência, ETs, mas agora não temos tempo".
Arranjaríamos tempo, se fossem mesmo ETs? Mesmo para quem mantém um salutar cepticismo em relação a todos os argumentos da categoria "a internet está a fazer X às pessoas , é possível acreditar que a internet fez (ou está em processo de fazer) qualquer coisa à nossa capacidade de absorver proporcionalmente novidades de grande magnitude. Qualquer notícia de última hora parece a coisa mais urgente de todos os tempos e essa urgência dissipa-se ao fim de duas horas. Na ausência de outras fricções colocadas à atenção, um atentado terrorista, um incêndio numa catedral, ou a invasão de um centro de estágios assumem a mesma dimensão.
Grande parte do efeito é causado pela interposição orgânica de várias camadas de mediação. Numa rede social, por exemplo, é raro reagirmos a qualquer coisa: muito mais comum é reagirmos às reacções a qualquer coisa. Quando nos chega, a notícia já vem temperada pelas reacções prévias e preventivamente encaixada numa de duas categorias: algo a celebrar ou a lamentar; motivo de júbilo ou indignação; algo comovente, ou hilariante; algo para concordar ou para discordar. A isto junta-se uma noção de "cepticismo" que parece menos uma atitude epistemológica do que um estilo emocional. Se um monstro com chifres, crânio rubro, pele escamada, e 200 metros de altura emergisse amanhã da cratera do Vesúvio para anunciar "Bom dia a todos, eu sou o Diabo, tudo aquilo que sempre ouviram sobre o Inferno é verdade, é tudo verdade", o incidente abriria telejornais, e faria manchetes, e provavelmente a RTP trataria de reunir um painel de emergência, com teólogos e filósofos a debater o assunto. Mas ao fim de vinte minutos também vai haver dezenas de tweets a perguntar "Sou só eu que não ligo nenhuma a isto de Satanás ter aparecido em Nápoles?". E ao fim de dois dias, a não ser que o Diabo faça qualquer coisa muitíssimo viral, haverá com certeza coisas mais importantes a acompanhar, nomeadamente em Alvalade.
Escreve de acordo com a antiga ortografia