A triste sina da Europa

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A Europa é o berço de quase tudo. A partir deste pedaço de terra recortado na ponta ocidental da Eurásia, forjaram-se e expandiram-se impérios que mudaram o mundo ao longo da última meia dúzia de séculos. Neste continente, nasceram as artes, a tecnologia, a organização social e os regimes políticos que se foram paulatinamente impondo ao longo de longínquas latitudes e longitudes. Como é da existência humana, grandes virtudes geram grandes pecados, pelo que há também um lado negro da Europa. Depois de Napoleão e Hitler, Putin veio reivindicar o seu lugar de monstro do século, ao invadir a Ucrânia e trazer de novo a guerra ao velho continente.

A história da invasão da Ucrânia não se explica com os acontecimentos deste inverno. Para a perceber, é preciso recuar à última crise fronteiriça, em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e patrocinou a guerra civil do Donbass, no leste da Ucrânia, entre os nacionalistas e os separatistas pró-Rússia de Donetsk e Lugansk. Para pôr fim a esse confronto, foram celebrados em 2014 e 2015 os Acordos de Minsk, segundo os quais seria estabelecido um novo estatuto político de autonomia para aqueles dois territórios.

Este é o ponto crítico da questão, um déjà-vu que enferma da fragilidade de outros tratados lavrados sobre os escombros de conflitos armados europeus, como foi o caso do Tratado de Versalhes que, em 1919, encerrou a primeira guerra, mas não evitou que vinte anos depois o continente estivesse de novo mergulhado no horror. No caso dos Acordos de Minsk, é factual que a tensão reduziu imenso e que se cumpriram algumas formalidades, como a troca de prisioneiros ou a entrada de ajuda humanitária. Contudo, aquela que devia ter sido a essência do entendimento, isto é, o conceito de autonomia dos territórios de Donetsk e Lugansk, foi deixada à mercê de interpretações díspares por parte dos signatários. A Rússia olhou para a letra de Minsk como um acordo habilitante da independência, enquanto a Ucrânia se pretendia naturalmente ficar por um nível de autonomia que não comprometesse a sua integridade territorial.

É nesta penumbra, tão característica dos acordos pós-guerra europeus, que a presente invasão começa a ser cozinhada, num processo em que todos poderiam ter feito bem mais. Embora menos culpadas, a UE, a OTAN e a Ucrânia jogaram um incompreensível jogo de risco. A última pouco fez no âmbito dos Acordos de Minsk, alimentando o capital de queixa dos Russos, em vez de ir dando sinais de concessão de algum nível de autonomia, como se comprometeu. Quando aos primeiros, têm vindo a acenar com a incorporação da Ucrânia na família europeia e no Tratado de Defesa do Atlântico Norte, sem, contudo, indicar um calendário. Do meu ponto de vista, o exercício, até agora incipiente, de levar a NATO até à fronteira da Rússia - apenas acontece com a Estónia e a Letónia - é de discutível eficácia para a estabilidade do continente europeu, podendo ser exploradas outras geometrias que, porventura, seriam aceitáveis e vantajosas pelos dois blocos, pela Ucrânia e pela própria Bielorrússia.

Em qualquer dos casos, as soluções deveriam passar pelo multilateralismo e pela diplomacia, algo que Putin resolveu definitivamente recusar. Ao violar a lei internacional e invadir uma nação independente e legítima, o autocrata tocou num dos nervos mais sensíveis de uma certa Rússia, que é o da restauração do império. Esta deriva não augura nada de bom para a Europa, que parece não ter argumentos suficientes para travar Putin, para além das habituais sanções económicas. Para já, é o Russo quem marca a agenda, mas a procissão ainda vai no adro.

Professor catedrático

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