A paz também é um ato médico 

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A paz tem rosto: o de uma mãe que finalmente dorme com o seu filho que já não acorda em sobressalto; o de um idoso que volta a ter a sua medicação regular; o de um doente que pode regressar aos seus tratamentos; o de quem reencontra a escola, o posto de saúde, o hospital. Quando a paz falha, não é apenas a geopolítica que se fratura. É a vida concreta das pessoas, todos os dias: terapêuticas interrompidas, vacinação por cumprir, ansiedade e desespero que se instalam, perdas irreparáveis e sofrimento prolongado. 

A guerra destrói muito para lá do momento do ataque. Incendeia hospitais, impede ambulâncias, dispersa equipas, destrói sistemas de saúde e semeia medo. O que fica é uma combinação cruel de dor física e ferida emocional: a insónia de quem fugiu, o silêncio de quem perdeu, o medo que se cola às crianças. Ao contrário do que por vezes se afirma, a neutralidade médica não é indiferença. É defesa ativa de todas as pessoas sem exceção, sem rótulos nem bandeiras, exigindo que os Direitos Humanos sejam respeitados e que a saúde jamais seja usada como arma de guerra. Este é o sentido ético reforçado no manifesto “A Medicina pela Paz: Imperativo Ético e Profissional”, recentemente publicado na Acta Médica Portuguesa e partilhado com a comunidade médica mundial. 

Dizer “a paz também é um ato médico” é reconhecer que o dever de proteger a vida não se esgota nas paredes de um consultório ou de um hospital. Inclui salvaguardar equipas, garantir corredores humanitários, condenar publicamente ataques contra unidades de saúde, acolher quem chega desprotegido e reconstruir comunidades fragilizadas. Este apelo é claro e urgente, e vale para todas as zonas atuais em guerra e em conflito no mundo: cessar-fogo imediato, proteção integral de civis e de equipas de saúde, acesso seguro a bens essenciais, libertação de detidos em condições contrárias à dignidade humana, responsabilização de quem transforma o sofrimento em estratégia. Trata-se da defesa de direitos humanos fundamentais e do direito universal à saúde. 

A paz não é apenas a ausência de tiros ou explosões; é a construção segura de pontes onde antes houve muros, o restabelecimento de relações humanas, a partilha de recursos, o acesso à assistência médica e o diálogo entre diferenças. É um ato coletivo que envolve governos, organizações, comunidades e cada cidadão, porque cuidar da paz é cuidar de todos. 

A paz é o primeiro terreno onde a saúde acontece. É ela que permite laços sociais fortes, educação contínua, famílias reunidas e comunidades capazes de prosperar. Onde existe paz, floresce a prevenção, a continuidade de cuidados e a confiança no futuro. 

Este é um apelo claro e urgente: que cesse a violência onde ainda ecoa, que se abram corredores seguros, que a dignidade de cada pessoa seja respeitada, que a solidariedade prevaleça sobre o ódio e a indiferença. Os direitos humanos e o acesso a cuidados de saúde não podem ser apenas discurso, têm de ser prática diária, guia de cada decisão política e de cada ação no terreno. Escolher a paz é escolher a vida. É por essa escolha que devemos responder, sem hesitações, enquanto comunidade, enquanto sociedade e enquanto humanidade. 

A medicina escolhe sempre o lado da vida; a paz é a sua linguagem mais simples e mais exigente. 

Bastonário da Ordem dos Médicos

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