A morte do conde Andeiro e a independência de Portugal

A ideia, segundo a qual, basta afastar ou eliminar um governante malquisto para os problemas ficarem resolvidos, é tão antiga e está tão arreigada na mentalidade das pessoas, independentemente da sua categoria social, que ainda hoje persiste, porque esquecemos com frequência ser a realidade muito mais complexa do que os nossos raciocínios podem fazer crer.

De acordo com a mentalidade medieval predominante, os erros cometidos pelo rei, que governava pela graça de Deus, não eram imputáveis ao monarca mas aos seus conselheiros, razão pela qual se evitava acusar o soberano de seus enganos.

Se porventura o rei decidia mandar cumprir as suas ordens e estas se revelassem inapropriadas, as culpas não eram atribuídas ao monarca mas à incapacidade de argumentação, à inabilidade e à incompetência dos seus conselheiros, pois eles tinham falhado na sua obrigação de saber como deviam demovê-lo.

Era voz corrente que de entre as figuras que mais influenciavam a rainha D. Leonor, a dirigir os destinos do país como governadora em cumprimento do Tratado de Salvaterra de Magos, era o conde João Fernandes Andeiro, seu braço direito, que com ela desembargava os assuntos do reino.

Para além de outros motivos era detestado por ser estrangeiro, por sinal castelhano, país que no reinado fernandino por três vezes saíra vencedor e agora estava em vias de poder integrar Portugal no seu território.

É óbvio que não se pode atribuir ao valido da rainha todos os males nacionais, todavia, a situação desastrosa legada por D. Fernando reclamava um bode expiatório, que fosse consensual e pudesse ser apontado como o principal culpado. Por isso, depressa se generalizou a ideia segundo a qual eliminando aquele responsável se podia salvar o país, pois o amante da rainha representava o cordão umbilical que ligava Portugal a Castela.

Não faltavam razões para se fundamentar esse pensamento prevalecente.

O povo, que não pudera evitar o casamento de D. Leonor com D. Fernando, canalizava as suas frustrações no seu protegido.

Nobres portugueses viam no seu afastamento, dos seus vassalos e apoiantes, a possibilidade de poderem ocupar os seus lugares.

Os mercadores sabiam que a unificação com Castela beneficiaria Sevilha em detrimento de Lisboa.

Havia membros do clero que acalentavam a esperança de poderem regressar ao seio do papa de Roma, Urbano VI, em vez de Clemente VII de Avinhão.

Daí que, por razões mais variadas, fastidiosas de enumerar, já em vida do monarca, houve desejos de executar o predilecto dando origem a cinco tentativas falhadas, promovidas, em conjunto ou individualmente, por D. João Afonso Telo, irmão da rainha e conde de Barcelos, D. João, Mestre de Avis, D. Pedro Álvares Pereira, prior do Hospital, Gonçalo Vasques de Azevedo e pelo próprio rei D. Fernando.

Em contraste com o insucesso dessas ilustres personalidades emerge a figura ímpar, controversa e carismática de Álvaro Pais, considerado o principal cérebro da revolução por muitos historiadores portugueses.

Como o seu plano secreto cuidadosamente maquinado foi bem-sucedido, os acontecimentos complexos e conturbados, ocorridos entre 1383 e 1385, são muitas vezes caracterizados, essencialmente, em função do papel primordial e determinante por si desempenhado em conjugação com a sua categoria social.

António Borges Coelho, além de apontar outras razões, escreve que a revolução é burguesa porque a conjura foi organizada pela burguesia sendo Álvaro Pais o chefe da alta burguesia lisboeta (A Revolução de 1383, Tentativa de Caracterização, Seara Nova, Lisboa, 1977).

A respeito dessa personagem singular, numa frase lapidar, Fernão Lopes indica claramente que não se trata de um nobre de primeira, segunda ou terceira categoria, como há quem queira fazer crer:

"Sooẽ aas vezes os altos feitos aver começo per taaes pessoas, cujo aazo nenhuũ comuũ poobo podia cuidar que per eles vehesse" (Crónica delRei dom João I da boa memória, Parte Primeira, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1977, p. 10).

Isto é, por haver correspondência entre os altos feitos dos indivíduos e os lugares por eles ocupados na pirâmide social, só eram dignos de admiração e louvor quando fugiam a essa regra, como acontecia com Álvaro Pais.

O cronista informa que esse cidadão lisboeta era homem honrado e de boa fazenda, tendo sido chanceler-mor do rei D. Pedro e de D. Fernando, à época o cargo mais elevado da administração pública.

Sofrendo de gota, foi honradamente aposentado em Lisboa a seu pedido, mas a sua influência era de tal ordem que, por mandato real, os vereadores citadinos nada faziam sem o seu consentimento.

Curiosamente, Armando Luís Carvalho Homem constata que a retirada desse vassalo régio e vedor de chancelaria coincide "no tempo com a inclinação de D. Fernando pela sua futura mulher, D. Leonor Teles" (Em torno de Álvaro Pais, separata de Estudos Medievais, n.ºs ¾, Porto, 1984, p. 21).

Mas Maria José Pimenta Ferro Tavares tem dúvidas em justificar a identificação de Álvaro Pais como burguês. Era vassalo do rei, cavaleiro, legista, cidadão, cortesão, morador e vizinho de Lisboa, fazendo parte do grupo de privilegiados (Jaime Cortesão: A Revolução de 1383 e Álvaro Pais, Cadernos, Revista Económica e Social, n. ºs 6-7, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1985).

É esse cidadão que vai ter com o conde de Barcelos D. João Afonso Telo, irmão da rainha, e lhe diz que a má fama da rainha, tanto no passado como no presente, desonrava-o a ele e a toda a sua linhagem e que, embora soubesse que ele havia tentado matar o conde Andeiro sem o conseguir, solicitava-lhe que concretizasse tal acção em retribuição das mercês e dos grandes acrescentamentos que o falecido rei lhe fizera e também por ser irmão da rainha.

Respondeu-lhe o conde que não sabia como fazê-lo, contudo sugeriu ser D. João, Mestre de Avis, a pessoa mais apropriada para levar a cabo essa honrosa missão.

No encontro com o Mestre, Álvaro Pais apresenta três razões justificativas: a desonra devia doer-lhe mais por ser irmão do falecido rei; por já ter sido preso, posto em perigo e quase executado; enquanto o conde Andeiro fosse vivo nunca estaria seguro.

Depois de muito discutir e ponderar, por ter alegado que era muito importante obter a ajuda do povo, Álvaro Pais replicou que lhe oferecia a cidade para o efeito, pormenorizando-lhe o estratagema concebido.

Nomeado fronteiro de Entre-Tejo-e-Odiana, D. João, Mestre de Avis, pernoitando na aldeia de Santo António a caminho do Alentejo, regressa na manhã seguinte a Lisboa e mata o conde Andeiro nos paços da rainha, no dia 6 de Dezembro de 1383.

Será que com a sua morte ficará garantida a independência de Portugal?

Historiador

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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