Ao ler o livro As Outras Crónicas, de António Lobo Antunes, não pude deixar de associar a sua escrita às Cartas da Guerra do autor (ambos os volumes editados pela Dom Quixote, o primeiro há cerca de dois meses, o segundo em 2005). Aliás, para mim, Cartas da Guerra tornou-se indissociável do filme homónimo de 2016 realizado por Ivo Ferreira, a meu ver uma referência central na história do cinema português deste nosso atribulado século XXI..Creio mesmo que a complexidade emocional do filme é mais atual do que nunca, sobretudo tendo em conta que, em vésperas do 50.º aniversário do 25 de Abril, o imaginário político dominante se enreda (e nos enreda) numa acumulação de "heroísmos" para consumo televisivo que, pura e simplesmente, ignora as singularidades dos seres humanos e suas relações. Pior um pouco, tal imaginário acredita, ou quer que acreditemos, que a maneira politicamente correta de lidarmos com as memórias do tempo da ditadura consiste em reduzi-las a um buraco sem fundo que importa esquematizar, talvez mesmo esquecer, como se não houvesse gente viva antes de 1974..Partindo das cartas do escritor a sua mulher (enviadas de Angola, entre 1971 e 1973, quando cumpria serviço como médico militar), o filme de Ivo Ferreira envolve um conceito ético e estético nos nossos dias cada vez mais menosprezado, ou apenas desconhecido. A saber: a palavra literária não existe carente de imagens, como se fosse imperfeita e necessitasse de ser "ilustrada". Dito de outro modo: o cinema não serve para "reproduzir" os livros; o seu poder, porventura a sua vocação, consiste em com eles criar uma cumplicidade narrativa capaz de nos ajudar a pensar o lugar que as palavras e as imagens ocupam na voragem do tempo..No prefácio a As Outras Crónicas, Daniel Sampaio dá conta do modo como conheceu o seu amigo António Lobo Antunes ("comemoramos em 2023 as bodas de ouro da nossa amizade") e faz uma sugestão que vale a pena sublinhar: "Os temas são muito variados e embora o conjunto tenha grande coerência, qualquer um de nós pode ler estas crónicas como quiser, sem se preocupar em seguir uma ordem.".Claro que os 187 textos agora coligidos podem ser situados no calendário (o site da editora informa que foram publicados na revista Visão, entre 2013 e 2019), mas a sua ordem pertence a um outro domínio - literário, sem dúvida - que está para lá da sucessão dos dias, meses e anos com que as nossas agendas dão conta da gélida inexorabilidade do tempo. Porquê? Porque a escrita não é um "duplo" do pensamento, seja ele qual for. Há nela um pensar que, em alguns momentos, pode até escapar ao próprio escritor. É esse, aliás, o mote da primeira crónica: "O começo de um livro é sempre muito difícil para mim. É um organismo vivo, independente, com as suas próprias leis que em geral me são estranhas e às vezes me surpreendem, as suas exigências, as suas regras." Um pouco mais à frente, António Lobo Antunes acrescenta mesmo que "o texto vai-se construindo apesar de mim, embora as palavras me custem os olhos da cara.".DestaquedestaqueAs crónicas de António Lobo Antunes celebram os livros como organismos vivos e independentes. .De alguma maneira espelhando essas convulsões em que a escrita começa (ou onde a escrita escolhe nomear a sua origem), os títulos das crónicas são de uma radiosa disparidade. Podem ser austeros e identificativos: "O dentista", O novo livro", "Agustina". Ou avançar com uma hipótese simbólica: "Se eu te esquecer, Jerusalém". Ou até sugerir o enunciado de uma inusitada lei interior à própria escrita: "Numa boa página de prosa ouve-se a chuva". A crónica pode mesmo expor a sua condição errática: "Não sei como chamar a esta crónica". No limite, pode chamar-se... "Zé". Começando assim: "Faz vinte anos que morreu o meu melhor amigo, o Zé, e a sua ausência continua a doer-me"..Conheceram-se no aeroporto, ambos a caminho do Brasil. A evocação de José Cardoso Pires ("Um escritor chamado Pires?") passa, assim, por uma resistência inicial: "Bom, li o tal José Cardoso Pires, pareceu-me um bocado obnóxio em relação aos outros, depois fui gostando mais". E um pouco mais à frente: "comecei a ficar farto de escritores portugueses que só me contavam histórias de operários bons e patrões maus, depois percebi que o Zé era diferente disso, depois fui crescendo"..No movimento desta aprendizagem, a escrita, celebração da vida, só acontece porque há nela uma magoada aceitação da nitidez indizível da morte. Cada livro nasce de um pacto pudico com essa nitidez, como numa natureza morta de Lucian Freud. Ou ainda, concluindo a crónica sobre o Zé: "Mas o que que eu gostava mesmo era voltar a encontrar-te. Consolo-me pensando que, mesmo sem nos vermos agora, continuamos juntos. Há com certeza um aeroporto por aí à espera de nos cruzarmos de novo.".Jornalista