A China e os EUA: as responsabilidades são mútuas

Publicado a
Atualizado a

Afinal, o encontro entre o presidente da China e o secretário de Estado norte-americano aconteceu. Antony Blinken estava em Beijing para conversações com o seu homólogo chinês. Isso, por si mesmo, já era considerado como importante para reatar a comunicação entre os dois governos. A última visita do género tivera lugar há cinco anos. Desde então, as relações políticas entre ambos os países entraram numa fase crescente de acusações mútuas sobre várias questões cruciais. A rivalidade entre eles é uma fonte inesgotável de tensões de alto risco, um manancial para políticos irresponsáveis e populistas. Poderá levar a uma confrontação direta e trágica. Se um conflito dessa natureza vier a acontecer, as responsabilidades serão provavelmente partilhadas.

Tratando-se das únicas superpotências que de facto contam, as suas prioridades absolutas devem ser duas: procurar manter um contacto construtivo permanente e responder de modo coordenado aos grandes problemas globais.

A reunião entre Xi Jinping e Blinken não terá sido nada apreciada em Moscovo. A liderança russa vive agrilhoada ao passado. Na arena internacional, Vladimir Putin aposta na guerra, o ás que resta no baralho de uma potência em desmoronamento. A força das armas é vista como a tábua de salvação. A Rússia afirma-se com base na sua participação em diversos conflitos, como o mostram as suas intervenções na Chechénia, na Geórgia, na Síria, no Mali e noutras partes de África, e agora na Ucrânia. Putin sente-se forte e temido quando o jogo decorre no terreno das confrontações armadas. A sua hostilidade para com os EUA é diferente da chinesa: resulta da frustração que provém de uma filosofia imperial ambiciosa, mas sem meios suficientes. À frustração junta-se a fúria de quem não aceita a realidade da nova relação de forças, que evolui num sentido que lhe é desfavorável. Nesse quadro, Putin não quer ver nenhum tipo de entendimento entre a China e os EUA.

O Presidente Xi, embora conduza uma política interna indefensável em matéria de direitos humanos, vê o mundo de modo diferente. Sabe que, contrariamente à Rússia, a China é um país em ascensão e que o seu progresso depende de uma cena internacional pacífica, que garanta a estabilidade das economias, e de um equilíbrio político que não crie atritos graves com os EUA, a Europa ou os vizinhos asiáticos. É uma visão aparentemente mais serena das relações entre os Estados.

O problema é que essa visão considera que uma boa parte das suas regras deverão ser definidas por Beijing, enquanto possível primeira potência mundial. Temos aí um problema, que torna o futuro bastante complexo e incerto. Note-se que sublinhar a possibilidade de futuras intranquilidades não é uma manifestação de pessimismo. É, isso sim, um apelo à prudência, à prática de relações diplomáticas francas, viradas para a resolução dos diferendos. É, igualmente, um chamamento à reforma do sistema multilateral, o que significa, entre outros aspetos, o reforço da autoridade dos líderes das organizações internacionais. Hoje, o modo como o aparelho multilateral funciona não facilita o exercício dos cargos com a firmeza, a isenção e a proatividade que os desafios requerem.

Xi mostrou que compreende o que está em jogo. Disse a Blinken que a China e os EUA têm de optar por uma atitude construtiva, que responda aos anseios da história, dos povos e do mundo. Xi gosta de expressões grandiloquentes. Fala de modo confuciano, como um personagem destinado a ficar na História. Mas entende-se a mensagem. E o presidente americano também a percebeu, embora tenha cometido um deslize negligente, ao referir-se em público a Xi como sendo um "ditador".

Palavras leva-as o vento, mas quando se está à frente de um Estado exige-se circunspeção. Agora, é preciso algo de concreto.

Face ao contexto internacional e ao facto de ambos serem membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, a China e os EUA poderiam mostrar a todos nós que ainda pode haver esperança no futuro. Assim, deveriam procurar fomentar conjuntamente uma iniciativa que pressionasse a Rússia a retirar-se dos territórios ocupados pela força na Ucrânia e permitisse às Nações Unidas, e a outros, trabalhar de modo coerente no restabelecimento da confiança e na reconstrução das vidas entretanto desfeitas.

Esta proposição será certamente tida como puro idealismo. Aprendi, no entanto, que o idealismo é o primeiro passo na caminhada para um futuro mais equilibrado.


Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt