A autonomia europeia na nova ordem digital da guerra

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Já lá vai o tempo em que se compravam armas como quem escolhe um automóvel. Tal como os novos “computadores com rodas”, chamados Tesla ou Byd, podem já hoje ser bloqueados em todo o mundo, com uma simples atualização remota de software e comandos over-the-air (OTA), as armas também deixaram de ser meros objetos de ferro e pólvora, pois são agora sistemas de informação complexos, entrelaçados numa teia de cooperação transnacional, onde vendedor e comprador precisam um do outro para que a máquina funcione.

Os grandes fabricantes de armamento já não entregam apenas um avião de combate ou um sistema de mísseis. Vendem um ecossistema de tecnologia, software, inteligência artificial e atualizações constantes, sem as quais o próprio equipamento se tornaria obsoleto. Uma arma moderna não dispara apenas projéteis, mas também dados. Liga-se a satélites, comunica com outras armas no campo de batalha e depende de uma rede global de manutenção e monitorização.

Assim, um país que compra um caça de última geração ou um sistema de defesa antiaérea não adquire apenas um objeto, mas entra numa relação de confiança e de dependência estratégica com o fornecedor. Um míssil inteligente que precisa de um satélite para guiar o seu alvo torna-se inútil se esse satélite for desligado pelo país vendedor. Um caça de combate, por mais avançado que seja, pode tornar-se um peso morto se o software que o faz operar deixar de ser atualizado.

Esta interdependência entre quem vende e quem compra transforma a geopolítica da guerra. Já não se trata apenas de saber quem tem mais tanques ou soldados, mas sim, quem controla a rede de informação que faz esses tanques e soldados funcionarem. A soberania militar de um país pode tornar-se uma ilusão se as suas armas dependerem de tecnologia estrangeira para as operar.

Neste contexto, a Europa enfrenta um dilema. Durante décadas, os países europeus confiaram nos Estados Unidos para a sua defesa, sob o guarda-chuva da NATO. No entanto, a ameaça de uma retirada unilateral dos EUA da defesa da Ucrânia e da Europa, defendida por Donald Trump, expõe a fragilidade desta dependência. Se Washington virar costas, a Europa não só ficará vulnerável, como também verá a sua capacidade de resposta militar comprometida pela falta de acesso a sistemas americanos essenciais.

Se a Europa for forçada a criar um sistema de defesa independente, deverá começar inevitavelmente a investir mais na sua própria indústria militar, reduzindo a dependência de fornecedores americanos e libertando as suas armas atuais da “voz do dono”.

A resposta europeia tem de ser clara. Não basta procurar alternativas temporárias. O momento exige uma estratégia de defesa comum, que vá além dos interesses nacionais e garanta uma verdadeira autonomia militar de longo prazo. Projetos como o caça europeu de sexta geração (FCAS) ou a adaptação do sistema de comunicações Galileu a operações militares, podem ser embriões de uma nova indústria de armamento europeia, baseada num novo ecossistema ciberdigital orientado ao futuro.

Neste novo mundo da guerra informatizada, ter uma arma não significa ter poder absoluto sobre ela. O verdadeiro poder reside na ligação invisível entre quem vende e quem compra e, sobretudo, em quem controla o fluxo da informação que dá vida a essas armas. No curto prazo, só resta à Europa a diplomacia multilateral e evitar conflitos que ponham em causa a nossa segurança.

Se a Europa quiser garantir o seu futuro, tem de deixar de ser um mero cliente no mercado global da defesa e tornar-se, finalmente, um ator independente e soberano em armas de nova geração, não só fabricando armamento físico, mas também agindo como uma verdadeira potência militar em rede, com uma estratégia comum e uma visão hiperdigital adequada ao futuro da sua (ciber)segurança.

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