A arte imita a política, ou a política imita a arte?

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As semelhanças entre os episódios recentes que assombram Portugal, envolvendo o Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, e a Antígona, tragédia milenar de Sófocles, deixam-nos a refletir: teremos encontrado em Montenegro a figura de Creonte, que entre recusa de reconhecer erros e tentativas de desviar a culpa, coloca a sua vontade de governar acima do país?

Nem se sabe por onde começar. O licenciamento da sua casa em Espinho foi alvo de notícias. Depois, revelou-se que a mesma serve de sede para a empresa familiar que Montenegro criou em 2021, dedicada à consultoria e gestão patrimonial, com a mulher e os filhos – dois deles menores - como sócios. A sua empresa presta serviços de proteção de dados a empresas como a Solverde, cuja Política de Privacidade do site não é revista desde setembro de 2020. Portugal fica com um Primeiro-Ministro que acumula rendimentos pela nomeação e de um grupo de casinos. O culminar da situação? Montenegro faltou à cimeira em Kiev para jogar golfe com o dono da Solverde.

Haverão ilicitudes em alguma parte desta história? Veremos. Mas a moralidade de um líder mede-se não pelo que a lei permite, mas pelo que a ética impõe.

A política como arte do possível, segundo Bismarck, deixou de ser vista como a capacidade de gerir recursos e adaptar-se às circunstâncias do país. Em vez disso, tornou-se apenas a arte de prolongar ao máximo a sobrevivência política – escapou a este cenário António Costa, ao demitir-se no seguimento de um parágrafo da Procuradoria-Geral.

Se Costa entendeu que “a dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com qualquer suspeição sobre a sua integridade”, o atual Primeiro-Ministro entrou numa espiral de intransigência, permitindo que todos os dias saia mais um facto que o descredibilize e, consequentemente, que destabilize o país. As respostas de Montenegro ao escalabro dos últimos dias estão nos antípodas da postura do seu antecessor.

Em vez de um diálogo aberto, com a humildade de assumir os seus – e apenas seus - erros, opta pela vitimização, recusando críticas, insistindo numa Moção de Confiança para segurar-se a si e ao seu governo. Mas confiança em quê, senhor Primeiro-Ministro? E em quem?

É que o Primeiro-Ministro não governa sozinho. Podia ter contido o dano para si próprio e poupar a imagem institucional do país – mas optou por reunir todos os seus ministros, constituindo-os cúmplices, e assim presenciamos o alcance do seu monólogo sem contraditório. Como coros secundários desta tragédia, repetem uma estratégia de defesa indecente, onde é culpada a oposição pelo escândalo, tentando desviar a atenção das acusações.

Como Creonte, que impôs a sua vontade em nome da ordem, Montenegro resiste. Nenhum político pode alegar surpresa quando as suas decisões e negócios são escrutinados. Quem ambiciona governar deve saber que a confiança pública não se conquista apenas com programas eleitorais, mas também com transparência sobre o seu caráter e os seus interesses – e não há moção de confiança que atenue o dano.

Resta lamentar que estas revelações só surjam agora e não aquando a eleição do líder do PSD. Este ciclo de opacidade e malabarismo só é possível porque a política portuguesa continua refém da falta de transparência. Os partidos têm que ser o filtro, evitando figuras dúbias como Montenegro. Como diz aliás Sófocles, “o tempo revela todas as coisas ocultas e esconde as que eram claras”. O país agradece que deixemos as tragédias gregas fora da política.

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