"Abandono do acordo nuclear com o Irão por Trump é uma grande erro estratégico"

Secretário da Energia quando Obama presidia aos EUA, Ernest Moniz foi um dos obreiros do acordo nuclear com o Irão. Em entrevista ao DN e Dinheiro Vivo, em Lisboa, o cientista lusodescedente criticou decisão de Trump de quebrar o acordado em 2015

Secretário da Energia quando Obama presidia aos EUA, Ernest Moniz foi um dos obreiros do acordo nuclear com o Irão e ficou famosa a sua fotografia já no avião de volta à América em julho de 2015, com o secretário de Estado John Kerry, a celebrar com vinho Madeira. A garrafa foi oferecida pelo então embaixador americano em Lisboa, Bob Sherman, ao lusodescendente, que tinha feito escala em Lisboa, sendo condecorado pelo Presidente Cavaco Silva e seguindo depois para Lausana, onde decorriam as conversações com os iranianos . Em Portugal nesta semana para a conferência APED Retail Summit, Moniz falou ao DN sobre o "grande erro estratégico" de Trump em abandonar o acordo com o Irão, mas também sobre os desafios energéticos do futuro.

O presidente Donald Trump abandonou o acordo nuclear com o Irão. Quão importante é este acordo para si, como o secretário da Energia que o negociou, e para o legado da administração presidida por Barack Obama?

O acordo nuclear com o Irão foi certamente um grande feito, mas, e quero enfatizar isto, muito menos importante para mim ou para a administração Obama do que o é para a paz no Médio Oriente e para a segurança global. O que tem de ser relembrado é que quando, em fevereiro de 2015, a negociação entrou em velocidade de cruzeiro entre mim e a minha contraparte, o Dr. [Ali Akbar] Salehi, naquele momento o Irão tinha acumulado 20 mil centrifugadoras, dez toneladas de urânio enriquecido e o mundo tinha muito pouco conhecimento sobre o programa nuclear iraniano. E isso era perturbador porque sabíamos que o Irão tinha tido um programa de armamento nuclear até 2004. Não construíram nenhuma arma nuclear mas tinham aquilo que os inspetores internacionais da Agência de Energia Atómica chamam um programa de armamento nuclear estruturado. Nós sabíamos disso quando estávamos a negociar este acordo . E devo dizer que as recentes revelações pelo primeiro-ministro [israelita Benjamin] Netanyahu simplesmente confirmam aquilo que já conhecíamos, mesmo que à medida que toda aquela informação seja analisada possa revelar algumas figuras, ou locais, ou equipamentos adicionais. De qualquer forma, de maneira alguma muda a atitude que nos levou às negociações e francamente pode fornecer muitas mais questões a que o Irão tem de responder. A ironia é que a forma de obter respostas para essas perguntas é pôr em funcionamento o processo criado no acordo com o Irão, o qual fornece os meios para fazê-lo. Voltando ao tema da decisão de iniciar negociações, gosto de repetir que o presidente [Ronald] Reagan, quando estava a negociar os acordos nucleares com a URSS, apreciava invocar o provérbio russo "confia mas fiscaliza". O que nós dissemos, dado o historial do Irão com programas de armas nucleares, é "não confies e fiscaliza, fiscaliza, fiscaliza". Assim, a parte mais importante do acordo é na realidade a monitorização e a verificação. Claro que é importante termos feito recuar o programa uns 15 anos, que haja menos centrifugadoras e que a maior parte do urânio tenha sido enviado para fora do país, mas o que realmente importa são as medidas de verificação, incluindo medidas-chave de verificação que nunca expiram, que são permanentes. Infelizmente, o presidente Trump recusou estender a suspensão das sanções e consequentemente retirou os EUA do acordo. É um grande erro estratégico porque, entre outras coisas, põe de parte as medidas de verificação para cuja aplicação trabalhámos tanto. Sempre no espírito de "não confies e fiscaliza, fiscaliza, fiscaliza".

É possível dizer que uma das prioridades de Trump em matéria de política externa é reverter tudo o que Obama conseguiu, desde a normalização com Cuba até ao acordo sobre o clima e agora esta questão do nuclear iraniano?

O padrão que o presidente tem seguido é reverter ou questionar muitos dos acordos feitos pelos seus antecessores na presidência. Obviamente que o caso de Obama, com os três exemplos que apontaram, é mais recente, mas também abandonou acordos comerciais tão antigos como o NAFTA. Penso que o presidente se assume publicamente como um negociante genial, mas não vimos isso acontecer até agora e certamente que são muitos os antigos acordos que estão a ser desafiados.

Preocupa-o o fosso entre republicanos e democratas, que vem de trás mas que se está acentuar-se desde a chegada de Trump à Casa Branca? Uma espécie de duas Américas de costas voltadas?

Penso francamente que as dinâmicas políticas internas em muitas das nossas democracias liberais ocidentais estão a ser desafiadas. Nos EUA, nota-se uma enorme mudança em comparação com há 20 anos ou mais, quando no Congresso se via tanta atividade que cruzava as fronteiras partidárias na busca de soluções. E provavelmente esta mudança é influenciada por este mundo novo das redes sociais, de comunicação fragmentada, que gera cada vez mais polarização em temas que costumavam ser transpartidários, como a política externa ou, e é a área em que trabalho, a energia. O debate sobre a energia nos EUA era entre regiões, com interesses diferentes, e não importava de que partido se era. Hoje também se tornou divisivo entre partidos. Teremos de tentar voltar a uma atitude em que o compromisso é visto como algo bom para se fazer progressos em vez de ser encarado como violação de princípios. Não sei quando vai acontecer, para ser honesto, mas teremos de voltar às palavras preferidas do presidente: saber negociar. É isso que significa a governação numa democracia. Se não soubermos fazer acordos que consigam juntar diferentes perspetivas, não sei como poderá funcionar a democracia.

Que consequências poderá ter a saída já conhecida dos EUA de um outro acordo, o de Paris, sobre alterações climáticas?

Obviamente, acredito que se trata de outro erro do presidente Trump, especialmente porque havia muitas maneiras, dentro do Acordo de Paris, de se ter reformulado a abordagem dos EUA aos compromissos já feitos. Tendo dito isto, vou agora dizer algo que pode parecer estranho: o anúncio da saída do acordo, que só terá efeito depois das próximas eleições americanas, em 2020, talvez não tenha assim tantas consequências diretas. Até porque, logo depois do anúncio, cerca de metade dos governadores americanos, muitos mayors de cidades grandes e 14 mil empresários, vieram a público dizer que não iam mudar de rumo. Trump não vai travar o caminho para a redução das emissões.

Como têm os EUA contribuído para a redução das emissões?

O progresso que os EUA fizeram até agora em prol do baixo carbono veio dos governos de cada estado e do mercado. O baixo custo do gás natural nos EUA levou a uma substituição de muito do carvão consumido. Há uma década, o carvão representava cerca de metade da produção de eletricidade, enquanto o gás natural dizia respeito apenas a um quinto. Há cerca de dois anos, o gás natural tornou-se uma fonte de produção de eletricidade maior do que o carvão, que passou de 50 para 30%. É uma queda enorme. E isso também ajudou a baixar dramaticamente as emissões de carbono.

O que mudou na política energética dos EUA com Trump?

Foi a liderança de Obama que uniu o mundo no Acordo de Paris. Agora essa liderança não está lá. Na administração Obama, o Climate Action Plan iria trazer novas iniciativas a nível federal que continuariam a redução das emissões, mas os governadores, os mayors e os empresários garantem que vão manter-se nessa rota. O mais importante é o empenho do setor privado, que tem muito capital empatado em projetos que vão durar décadas. O que eles dizem é: este presidente pode ter-nos tirado de Paris, mas sabemos para onde queremos ir. Várias empresas de utilities já estão a cortar nas suas emissões e a apostar em renováveis. É isto que me dá coragem. O presidente pediu ao Congresso uma redução do orçamento para a área da energia, mas o Congresso respondeu com um aumento de 10%. Espero que os EUA possam um dia regressar ao Acordo de Paris.

Com os EUA a apostar na redução das emissões de carbono e nas renováveis, Portugal pode servir de bom exemplo?

Não só nas renováveis. Portugal tem tido um grande foco na eficiência energética. No meu estado, Massachusetts, também fomos identificados como os primeiros em termos de eficiência energética nos EUA nos últimos cinco anos. Talvez tenha que ver com a grande percentagem de população portuguesa na região. Em relação a Portugal, a razão pela qual as grandes quantidades de energia eólica e solar podem resultar tem que ver com a existência de energia hidroelétrica que pode ajudar a equilibrar a oferta de renováveis. Nos EUA não temos esse cenário.

Qual imagina que venha a ser o mix energético do futuro?

A minha abordagem é de inclusão de todas as fontes de energias nesse mix, consoante o país e a região em causa. Não há uma solução igual para todos. Temos de desenvolver as ferramentas para que todas as fontes de energia possam tornar-se compatíveis com um mundo de baixo carbono. Esta visão pode incluir até os combustíveis fósseis se for possível capturar o CO2 emitido e armazená-lo a nível subterrâneo ou usá-lo para produtos.

Mas a transição energética não se baseia em energias mais limpas?

A transição energética tem de passar também pela captura de CO2. Os que dizem que todo o sistema elétrico será salvo pela energia eólica e solar, não acredito que estejam corretos. O que defendo veementemente é que precisamos de uma drástica redução das emissões de dióxido de carbono, muito mais do que está previsto no Acordo de Paris, que não vai além dos 25% ou 30% até 2030. Acho que para as economias mais desenvolvidas essa redução devia ser de 80% até 2050. A captura de CO2 não é futurista, está a ser feita hoje. Mas não em grande escala, como é necessário. E também precisamos de reduzir custos. Não me interessa a tecnologia usada, eu só quero capturar o CO2, desde que funcione. Nas centrais a carvão, ainda é muito caro capturar o dióxido de carbono. Devia começar a ser feito em complexos industriais, porque aí o processo é mais barato. A indústria é o setor mais difícil de descarbonizar, porque não vamos eletrificar as fábricas.

Que papel está reservado para a energia nuclear?

Sabemos que o nuclear não fará parte da equação na Alemanha, por exemplo, mas sim noutras partes do mundo, como a China, que tem um enorme programa de desenvolvimento nuclear, para substituir o carvão e baixar o carbono. Quanto aos EUA, não é claro o futuro do nuclear. Há dois novos reatores nucleares que serão concluídos nos próximos anos. Ao mesmo tempo, seis centrais foram fechadas por causa dos baixos preços do gás natural e do rápido aumento das renováveis.

Os países do Médio Oriente, tipicamente produtores de petróleo, estão também a apostar no nuclear. É uma surpresa?

Não. Há muitos anos que dizem que estão a olhar para o nuclear como uma forma de reduzir o uso doméstico de combustíveis fósseis, para terem mais para exportar. E pode também contribuir para a redução das emissões de carbono. Os Emirados acordaram em fortes políticas de não proliferação há muitos anos. A Arábia Saudita também. Estão a admitir que o petróleo e o gás não vão acabar tão cedo, mas existe a questão de um futuro com baixo carbono a pôr em risco económico as suas reservas petrolíferas. Querem transformar as suas economias e a forma como produzem energia.

Como vê o impacto geopolítico de os EUA ressurgirem como grande produtor de petróleo e gás?

No gás, a revolução do gás de xisto já aumentou dramaticamente a produção e o mais importante é que existem expectativas de que isso mantenha os preços baixos. Já teve várias implicações: primeiro, é por isso que há tanta substituição de carvão por gás, o que reduz as emissões; segundo, esse gás a preços mais baixos transformou a manufatura nos EUA, com investimentos de dois mil milhões de dólares em nova atividade industrial só na região da costa do golfo [do México]; terceiro, agora que estamos a exportar gás natural, aliás, só o facto de os EUA estarem entre nos três maiores exportadores de gás natural liquefeito, o que vemos é que o mercado global está a mudar para melhor, o que é bom, por exemplo, para a segurança energética europeia.

No petróleo, os EUA são o maior produtor mundial, à frente da Arábia e da Rússia. Isso afeta os preços, certo?

É importante lembrar que os EUA continuam a ser um grande importador. O facto de estarmos a produzir até dez milhões de barris por dia são boas notícias, porque equilibra a nossa balança de pagamentos, mas ainda importamos milhares de milhões de barris por dia. O facto de estarmos a exportar petróleo desde 2015 é importante porque as refinarias americanas não estão tão preparadas para este petróleo de xisto, que é mais leve, e assim é direcionado para a Europa. Com isto, a OPEC e outros, como a Rússia, limitaram o seu fornecimento em alguns milhões de barris por dia, o que aumentou a pressão nos preços. Com a economia global a aumentar mais de 3% no ano passado, a procura de petróleo está a crescer, e somando as incertezas quanto ao Irão, aumentou a pressão nos preços e veremos se a OPEC mantém a sua produção em baixa.

O protecionismo de Trump é a maior ameaça ao crescimento económico mundial?

Não sei se é a maior ameaça. Se houvesse uma guerra comercial global seria péssimo, claro. No que diz respeito à China, não há dúvida de que os EUA, a Europa e o Japão deviam estar a unir--se para mudar a forma de a China se apropriar da propriedade intelectual e da tecnologia. Não estamos a fazer o suficiente. Essa é a maior ameaça. O foco do presidente nos desequilíbrios comerciais, não só com a China, mas com toda a gente, está deslocada em termos de impacto global. A força geopolítica dos EUA no mundo está baseada em alianças, em instituições financeiras criadas após a Segunda Guerra Mundial, em relações comerciais de décadas. Tudo isto está a ser posto em causa, infelizmente.

Uma última pergunta, mais pessoal. É a primeira vez que regressa a Portugal, desde a condecoração de 2015. Como descreve a sua relação com o país dos seus antepassados? Sente uma nova atração pelas suas raízes?

Sinto-me bem por estar de novo em Portugal e feliz por ter criado novos laços. A Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique foi uma enormíssima honra e que me emocionou, especialmente porque eu venho de Fall River, terra de emigrantes açorianos, que tem mesmo lá uma estátua do infante erguida.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG