ENTREVISTA: Rússia quer Europa forte para esta ser menos dependente dos EUA - analista russo

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Lisboa, 27 jun 2019 (Lusa) -- A resiliência da União Europeia às crises não deve ser subestimada e à Rússia interessa uma Europa forte porque será menos dependente dos Estados Unidos, referiu à Lusa um analista político russo.

"A União Europeia (UE) não atravessa uma crise, mas várias crises. É um desafio extraordinário, mas numa abordagem positiva não devemos subestimar a resiliência da UE", disse em entrevista à Lusa Andrei Kortunov, diretor-geral do Conselho de Assuntos Internacionais russo (Russian International Affairs Council, RAIC).

O analista indica a crise das migrações ou da zona euro como exemplos da resiliência da União, admite que os problemas não terminaram mas considerou que a situação não é desesperada e que os atuais problemas vão ser ultrapassados.

"Há três, quatro anos, muitos pensavam que as migrações iam simplesmente destruir a União. E com a crise previa-se o colapso da zona euro, o que não sucedeu. Os eurocéticos são hoje mais fortes, mas não dominam a política europeia. O 'Brexit' ainda não está concluído, mas não foi desencadeada uma guerra comercial entre a UE e o Reino Unido", destacou.

Andrei Kortunov considerou existirem motivos para otimismo, ao sublinhar que a UE "constitui o mais bem-sucedido projeto de integração da História da humanidade".

Um projeto que também é acompanhado com particular atenção pela liderança do Kremlin, prosseguiu o académico, interveniente na Conferência anual do Conselho Europeu de relações internacionais (European Council on Foreign Relations, ECFR), que decorreu entre terça-feira e hoje na Fundação Gulbenkian, em Lisboa.

"A Rússia está claramente interessada numa UE forte, porque significa que é menos dependente dos Estados Unidos, mais capaz da sua própria política, incluindo da sua política em relação a Moscovo", salientou.

E neste campo, realçou a "relação afetuosa, de simpatia", que existe na Rússia em relação a Portugal.

"Durante muito tempo os dois países foram como que marginalizados na Europa, a Rússia no extremo leste da Europa e Portugal no extremo ocidental. Existe uma espécie de simpatia, tivemos de provar que pertencíamos à Europa", considerou.

Esta perceção, sublinhou o académico, também abrange as relações institucionais bilaterais.

"Não há grandes problemas nesta relação, se virmos como Portugal vota na UE, ou no Conselho da Europa, basicamente sentimos que Portugal é um parceiro. Mas temos de fazer mais em termos de comércio, investimento, turismo. Em definitivo existe uma potencialidade que tem de ser mais explorada", defendeu.

Ao abordar a atual posição da Rússia no contexto internacional, sustenta que o seu país terá de provar em diversos domínios "que não é parte do problema mas antes da solução".

E especificou: "A Rússia deve tornar-se num importante contribuinte global em termos de segurança, desenvolvimento, pode desempenhar uma função significativa para assegurar estabilidade estratégica em termos de controlo de armamentos, devemos prosseguir com o desarmamento nuclear, resolver os conflitos regionais".

O diretor-geral do RAIC também contraria as abordagens que hoje colocam a Rússia no campo das potências regionais, em detrimento da sua anterior função de ator è escala global, em particular nos tempos da ex-União Soviética.

"A Rússia tem uma palavra a dizer, veja-se o Médio Oriente, é um importante ator na região e tem uma função a desempenhar. Considero que por vezes a política externa russa é mais oportunista que estratégica, algumas vezes mais reativa que pró-ativa, mas não retira à Rússia um importante papel à escala regional e global", sustentou.

O analista insiste no tema, ao assinalar a dificuldade que atualmente existe em distinguir crises regionais de crises globais.

"Por vezes, ocorre uma ação a nível regional que ganha implicações globais", precisou. "Por exemplo, o Médio Oriente, é um problema regional ou um problema global? Julgo ser um problema global, no sentido em que a situação no Médio Oriente afeta todo o mundo, não apenas as regiões vizinhas mas o leste da Ásia, ou a América Latina. Se algo corre mal aí, todos sentimos as repercussões", frisou.

A resolução do conflito militar na Ucrânia, entendida como uma crise regional mas com repercussões internacionais, está dependente na sua perspetiva da "vontade política" das duas partes, que devem demonstrar flexibilidade.

"Seria relativamente fácil terminar a guerra, mas é mais difícil solucionar a dimensão política da crise. Para a solucionar, precisamos de pensar basicamente numa nova arquitetura de defesa europeia. A Rússia e a Ucrânia sentir-se-iam mais confortáveis, porque se não tivermos esta arquitetura, a Ucrânia estará sempre a admitir uma potencial agressão da Rússia, e a Rússia terá sempre receio que a NATO se aproxime mais das suas fronteiras", frisou.

"É necessário garantir esse acordo que termine com os medos que prevalecem na Ucrânia e Rússia sobre os seus lugares na Europa", acrescentou.

Numa referência à questão da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, demonstrou acentuado pragmatismo: "O problema será longo, como é longo o problema entre o Reino Unido e Espanha sobre Gibraltar. Mas não é o único problema que temos de abordar, há muitos mais".

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