Uma "certeza é certa", o fim da Operação Barkhane (francesa) no Mali/Sahel em novembro do ano passado, permitiu o avanço de duas novas realidades, na lógica da não existência de espaços vazios em política. Quando uns saem, outros entram. Saíram os franceses e entraram os russos (Wagner) e também os jihadistas afiliados à Al-Qaeda do Magrebe Islâmico (AQMI) e do Estado Islâmico (EI). Em rigor, estes jihadistas não entraram porque já lá estavam, antes alargaram o seu raio de acção perante o vazio deixado pelos franceses. Este degradar da presença francesa, que se torna mais visível a partir de 2013 (Operação Serval) e 2014 (Operação Barkhane), teve declínio surpreendente a partir do golpe levado a cabo pela turma da Academia Militar de Kati, que teria Assimi Goita como delegado (de turma), em agosto de 2020..Esta data marca o expandir dos tentáculos russos a toda a região, nomeadamente ao Burkina Faso, que sofre golpe militar idêntico em janeiro de 2022. Porquê e como? Porque a máquina de propaganda russa aproveitou o sentimento antifrancês manifestado pelas populações locais, maliana e burquinabé, num misto de revanche anticolonial com as críticas apontadas ao modus operandi dos "barkhanes", concentrados na caça ao terrorista e não na defesa e apoio às populações mais isoladas e vulneráveis, as quais sofriam retaliações após as ações francesas, confundidos pelos jihadistas enquanto colaboradores destes estrangeiros na perseguição aos "virtuosos do Islão". Perante o cenário "entre a espada e a parede" estas populações foram optando pela espada, aliando-se aos jihadistas que lhes passaram a fornecer a proteção negligenciada pelo elemento estranho ao seu quotidiano, os franceses. O número de bandeiras russas presentes nas manifestações no Mali ao longo de 2020 e no Burkina 2021 adentro, fez prova da adesão local à alternativa que se desenhava. Não há quiosques em Bamako e em Ouagadougou de venda de lembranças locais e bandeiras russas, ou outras, para turista comprar. Foram as populações que por iniciativa própria, mobilizaram os seus parcos recursos para comprarem tecidos, linhas e agulhas, para cozerem a tricolor russa e a brandirem a cada manifestação marcada. A agressiva máquina de propaganda russa, tendo por base o "telemóvel das redes sociais" em cada bolso anónimo, resultara plenamente e a custo praticamente zero..É aqui que poderemos dar o salto para a atual realidade de janeiro de 2023 e perceber que a perceção europeia da realidade local, é fruto de uma guerra de informação entre França e Rússia. Exemplos: primeiro e regressando a janeiro de 2013 (Operação Serval), os relatos franceses sobre as colunas de pick-ups jihadistas a caminho de Bamako nunca foram consubstanciados com uma imagem satélite, uma fotografia de um drone, uma prova concreta. O então recém-eleito presidente (PR) François Hollande, sentiu a necessidade de fletir o músculo em jeito de ação preventiva, necessária e que consubstanciava a sua condição de estratega e do estadista que não hesita, antes age, do verbo agir! Em setembro de 2021 a onda de golpes que teve início no Mali, também se estendeu à República da Guiné (Conakri), mas sem o mediatismo e pânico posterior aos golpes no Mali e no Burkina. Porquê? Porque o golpista presidente Mamady Doumbouya mantém boas relações com a França. Assim sendo, o Eliseu não sente tanto a necessidade de tweetar. Segundo um analista argelino, quem pertence à franco-maçonaria não apresenta as mesmas preocupações para França que outros "militares livres"..Fonte maliana que pediu o anonimato, não por receio de retaliações jihadistas ou das Forças Armadas Malianas (FAMA), mas antes da população, que se encontra completamente poluída pela Junta Militar do "delegado de turma" Assimi Goita, já que acredita em tudo o que este debita nas "redes sociais de bolso". Revelar as verdades que se seguem, significa para os locais estar contra a Junta, estar contra o Mali e o destino a dar a tal elemento será um tiro na nuca! Esta fonte esteve recentemente presente num jantar que concentrou empresários, câmaras de comércio, assessores para a área económica e diplomatas. Diz que nunca viu o embaixador da União Europeia (UE) "tão bem guardado" como agora. Ao convidá-lo para visitar as instalações da sua fábrica/armazém, para mostrar como o trabalho na sua empresa tem evoluído positivamente, apesar do agravar da situação, obteve como resposta um, "impossível você encontra-se numa zona da cidade insegura para mim"! Mas há zonas vermelhas em Bamako? Começa a haver, relatou a fonte, acrescentando também, "tenho uma fazenda a 40 km da capital, fui lá há um ano e percebi que começava a ser ocupada por gente estranha, deslocada doutras paragens. Nunca mais lá fui, mas sei que já são "mais que muitos", que já fecharam a escola local, que já impuseram a lei islâmica na cabeça das mulheres e que as destapadas já foram chicoteadas em praça pública. O que se passa neste meu pedaço de terra, está a acontecer em todas as aldeias da periferia a 10/15 Km da capital. Chegam, instalam-se, começam a casar e a casarem os filhos com as meninas locais, fecham escolas, interrompem o sinal de acesso aos telemóveis/informações e criam o seu califadozinho sem interferência da Junta Militar. Sei que o mesmo está a acontecer nos arredores de Ouagadougou (capital do Burkina), porque tenho um empregado que foi lá recentemente de férias e voltou a dar conta do mesmo cenário que aqui". Pergunta: acha que se estará a preparar uma ação concertada para invadirem ambas as capitais? Resposta, "só ainda não o fizeram porque ainda não quiseram!".É aqui que convém incluir a análise do jornalista português Rui Neumann, residente em Paris e profundo conhecedor das dinâmicas magrebinas e sahelianas, para quem o objetivo não é invadir Bamako ou Ouagadougou. Porquê? "Porque conquistar uma capital de qualquer país é importante do ponto de vista simbólico, mas depois é preciso manter, não se trata de um bate-e-foge e manter dá trabalho, obriga a coordenação e ainda mais logística". Então qual a razão destes "cercos"? Simples, replica Neumann, "estas movimentações já obrigam a uma concentração das FAMA/Wagner em Bamako, libertando o norte e centro maliano da malha securitária desenhada pelos franceses e insipidamente ocupada posteriormente pelas FAMA/Wagner. Prova disso, foi ver em meados deste mês de janeiro, Iyad Ag Ghaly, líder do JNIM (Jama"at Nusrat al-Islam wal Muslimeen, a cabeça do AQMI), um dos homens mais procurados do mundo, pavonear-se em Menaka através das redes sociais, aquando de uma reunião de confirmação de novos afiliados desta internacional jihadista." Assinalar aqui a provocação deste líder, já que se há jihadista discreto e cauteloso, este é um deles!.De regresso à fonte anónima maliana, está convencida que, perante este cenário de aproximação jihadista da periferia para o centro, terá havido uma negociação entre os Wagner e os diferentes grupos terroristas, com o seguinte sentido, "vocês não atacam ninguém e nós também não vos atacamos". Entretanto, para apresentarem serviço, a dupla FAMA/Wagner terá dizimado a localidade de Moura (lê-se Murra, março 2022), a 600 Km da capital, segundo a interpretação de que quem é da etnia Fula é terrorista. Neste caso específico, ninguém o era, mas foram apresentados enquanto tal, no rescaldo final da ação. Este facto voltou a criar os anticorpos na população norte face às FAMA, agora acompanhadas pelos russos, que replicam os anticorpos dos idos 1990"s, entre FAMA e tuaregues e entre tuaregues de tez mais clara e os de tez mais escura. Detalhe prosaico deste anónimo, mas significativo da geminação FAMA/Wagner e da autocensura a que por vezes nos impomos, ficou patente no seguinte relato: "faço questão de uma vez por semana ir jantar ao Le Relax (Bamako), mas deixei de ir quando passei a ver o restaurante cheio de fardas malianas e de mochilas com o símbolo dos Wagner a circularem abertamente nesse espaço de eleição". Ora este maliano que não sabia ter a fábrica/armazém numa no-go-zone da capital, acabou de estabelecer uma outra em plena "Avenida da Liberdade de Bamako"!.Este potencial entendimento FAMA/Wagner com os grupos terroristas e o mesmo cenário a replicar-se no Burkina, com a verificada deslocalização da periferia para o centro, permite à França soar os alarmes, no sentido de se antecipar à agressiva máquina de propaganda russa. Os russos falam para dentro, enquanto os franceses falam para fora. Na realidade, tirando a França da equação, quem está nesta frente de batalha, está também enterrado no lodo até ao queixo. Desta forma, ninguém se pode agitar muito, sob o risco de alguém ter de engolir um ou dois pirolitos! Nem os jihadistas querem tomar as capitais, porque teriam depois que as manter. Nem as juntas militares maliana e burquinabé querem enfrentar os grupos jihadistas, pois o planificado em paz esboroa-se sempre nos primeiros cinco minutos de guerra e estes regimes golpistas perderiam o controlo dos acontecimentos, o que implicaria um regresso da França/UE para vergonha dos próprios e daqueles que cegamente os seguem..Destas duas fontes, retivemos duas expressões profundamente elucidativas da base desta degradação progressiva da segurança no Sahel. Para o português Rui Neumann, "o fenómeno do populismo societal" transversal e antifrancês no Mali e no Burkina têm alavancado as decisões das respetivas juntas militares. Para o anónimo maliano, vive-se "um fanatismo popular no auge em prol da Junta Militar", dando às populações certezas infalíveis que as fazem compactuar com as autoridades, apenas faltando um anúncio televisivo que diga, "o que é antifrancês é bom"!.Politólogo/Arabista www.maghreb-machrek.pt (em reparação)