O Brasil branco prefere Bolsonaro e o mais vulnerável está com Lula

Para politólogos, o país está geograficamente dividido porque o PT fala em nome de pobres e nordestinos. Enquanto os descendentes de europeus, ao sul, se reveem no "nacionalismo cristão" proposto pelo atual presidente.
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Na ressaca da primeira volta das eleições presidenciais do Brasil, no dia 3 de outubro, os jornais do país enviaram imediatamente repórteres a Nova Pádua, no Rio Grande do Sul, o estado mais meridional do Brasil, e a Wanderley, na Bahia, cidade no coração do sertão nordestino. O motivo era simples: a primeira, foi onde Jair Bolsonaro obteve a maior votação em todo o país, com 84% contra 10% de Lula de Silva. A segunda, aquela em que o antigo presidente foi mais dominador, com 96% dos votos face aos menos de 3% do rival.

Nova Pádua foi fundada no final do século XIX por sete famílias do Veneto, por acaso a mesma região italiana de onde são originários os "Bolsonaro", enquanto as primeiras famílias a habitarem Wanderley foram os Teixeira, os Sousa, os Alves, os Brito e os Pereira, descendentes, como os Silva, o último nome de Lula, de portugueses, de indígenas e de africanos.

"O que sentimos na população é uma repulsa à corrupção. Se a esquerda quer apresentar uma solução, que renovem os seus quadros, e não apresentem um antigo presidente que estava preso", justificou Danrlei Pilatti, prefeito de Nova Pádua, à Rádio Gaúcha. "Se fosse aceite a agenda ambiental proposta pela esquerda, hoje não poderíamos nem plantar uma parreira em paz", continuou o eleito pelos seus pares de uma cidade onde a agricultura é responsável por 85% do PIB.

À TV Recôncavo, filial baiana da TV Globo, o sociólogo Fábio Bonfim, da Universidade do Sergipe, explicou que "ao longo da sua história socioeconómica e política", as regiões como aquela onde Wanderley se situa, "foram fortemente marcadas por grandes contrastes económicos e relegadas a serem apenas regiões de exploração agrícola". "Esse cenário transformou-se com os governos do PT graças a políticas públicas voltadas ao desenvolvimento do campo e à educação que possibilitaram uma melhoria de vida para os jovens, antes obrigados a ir logo trabalhar".

Ao DN, Mayra Goulart, cientista política na Universidade Federal do Rio de Janeiro, completa: "a primeira razão pela qual o nordeste vota massivamente no Lula é porque ele é nordestino e reivindica isso, ele é um retirante [migrante], alvo de preconceito em São Paulo como nordestino, logo ele consegue gerar esse vínculo de identificação imediata com a população do nordeste".

"Por outro lado, os governos do PT promoveram políticas públicas que vão muito além do [programa assistencial de transferência de verbas públicas] Bolsa Família, políticas que envolveram obras na área da energia e da infraestrutura direcionadas sobretudo ao nordeste que sempre foi uma das regiões mais marginalizadas e esquecidas".

"No nordeste estão concentrados muitos eleitores com um perfil com tendência a votar no Lula, porque são os eleitores que ganham até um salário mínimo, vulneráveis e marginalizados e por isso identificados com um partido que fala em nome dos vulneráveis e marginalizados", continua. "São aqueles que esperam do estado uma salvaguarda e proteção e políticas em prol de uma mobilidade social que é muito difícil de se obter sem apoio quando se está nas escalas mais baixas da pirâmide económica brasileira".

Em suma, de acordo com a politóloga, "para os nordestinos o PT é o partido com lideranças mais atentas a essas demandas".

E a relação do bolsonarismo com o sul do Brasil? "Esta revolução à direita no Brasil vive do BBBBB, ou "penta B", resume Vinícius Vieira, professor da Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo. A sigla refere-se a "bíblia, bala, boi, branco e bolsonarismo raiz - ou boçalidade".

"O b de bíblia faz-se presente através dos evangélicos, que cresceram muito, sobretudo a partir dos anos 2000, curiosamente nos governos de Lula, mas que não reconhecem isso, pelo menos os pastores líderes, e apoiam, na sua maioria, Bolsonaro, da mesma forma que o bible belt [cinturão bíblico], no sul dos EUA, apoia Trump, aqui o "cinturão bíblico" vota Bolsonaro", diz Vieira.

"O b de balas é composto por militares revanchistas que se formaram nos anos 70, sob a ditadura militar, mas que chegaram ao poder em democracia, eles usaram a esquerda, quando Lula os empoderou com a missão no Haiti, mas agora viram-lhe as costas porque sempre o viram com suspeição".

Para o politólogo, "o b de boi também foi fomentado pelo Lula, com investimento no boom das commodities mas tem, em paralelo, origem na ditadura com o incentivo à ocupação da região centro-oeste, então quase inabitada, esses brasileiros, ligados ao agronegócio, veem-se quase como os homens do "faroeste à brasileira"".

"Há ainda o b é de bolsonarismo raiz, ou, de boçalidade, sem ofensa, apenas no sentido de ignorância, composto por aqueles indivíduos, quase sempre do sexo masculino, de formação média, que se orgulham de nunca ter lido um livro e se reveem num Brasil tradicional, de patriarcado", prossegue Vieira.

"O último b é de branco, porque apesar de haver pretos, pardos e mestiços, os grandes proprietários são descendentes, sobretudo, de alemães e italianos e de outros povos europeus que chegaram ao sul e vivem cultivando a ideia de que o sul é distinto do resto do Brasil".

A propósito, Vieira verificou no seu livro Shaping Nations and Markets [Moldando Nações e Mercados], que explora as raízes dos populismos nos EUA, na Índia e no Brasil, "que Bolsonaro tinha mais possibilidade de ganhar de Fernando Haddad na eleição de 2018 nos municípios de maioria branca do que nos municípios de maioria evangélica".

"No bolsonarismo há um nacionalismo branco implícito, travestido de nacionalismo cristão, o que é uma revolução em relação à valorização que o país sempre teve da mestiçagem", observa.

"E por que os brancos votam Bolsonaro? Como reação à política de quotas, promovida pelo PT, por se sentirem próximos desse nacionalismo cristão que Bolsonaro enfatiza e por ele ser porta-voz dos que veem mais o lado "Brasil filho da Europa" e menos o lado "Brasil herdeiro dos povos originários e da África"".

Vinícius Vieira lembra, a propósito, que "em Santa Catarina, o estado mais branco de todos, há inúmeros casos de ligações de parte da colónia alemã, não toda, claro, ao nazismo".

dnot@dn.pt

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