"O antagonismo entre EUA e China tem características diferentes da rivalidade bipolar da Guerra Fria"
Professora e investigadora do IEP - Católica e investigadora associada do ECFR, Lívia Franco fala ao DN dos desafios para 2023 de China e Estados Unidos - do fim da covid-zero à inflação mundial provocada pelas consequências da guerra na Ucrânia.
Com poderes reforçados depois do XX Congresso do Partido Comunista Chinês lhe ter garantido um inédito terceiro mandato, Xi Jinping promete concentrar-se no crescimento económico em 2023. Mas a política de covid-zero e o seu fim incerto - a juntar a uma recessão mundial - está a prejudicar a segunda economia mundial. Este é o maior desafio para a China de Xi em 2023?
É com certeza um grande desafio. A recente inflexão das autoridades chinesas no combate à pandemia, bem como a intensa propaganda governamental a prometer o regresso à "normalidade" na primavera, vem confirmar isso mesmo. O custo económico da política de covid-zero tem sido altíssimo e explica, em parte, a desaceleração do crescimento económico chinês. O Banco Mundial prevê que, pela primeira vez desde a década de 90, este ficará atrás do da maioria dos outros países da região. A isto deve juntar-se ainda a administração dos protestos populares, inéditos em território continental, e que são tarefa de grande sensibilidade para um regime fortemente autoritário como o chinês. Por fim, é ainda de acrescentar, a necessidade de gerir sensatamente as complexas consequências globais da guerra na Ucrânia. Enfim, 2023 vai ser um ano exigente para Pequim e o seu líder.
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A tensão com Taiwan tem vindo a subir. Um eventual ataque à ilha, ao estilo da invasão russa da Ucrânia, é uma possibilidade nos próximos meses, sobretudo se a economia chinesa não estiver a crescer o esperado e Xi precisar de criar um efeito de diversão?
Essa tese tem sido apresentada por alguns analistas, mas não a apoio. É claro que a China tem uma agenda revisionista do ponto de vista político-territorial, e o "regresso" da província rebelde de Taiwan - para usar a terminologia de Pequim - é elemento central na sua visão geopolítica, e que inclui, se necessário, o uso da força. Contudo, contrariamente a Moscovo, que Pequim considera por vezes ser imprudente, a China dá grande importância à paciência estratégica. Apesar de terem interesses que se sobrepõem, a China está numa posição diferente da da Rússia e tem outras capacidades. A China é uma superpotência global e não está em declínio. Claro que tem muitas queixas sobre o Ocidente e o tratamento desigual que este lhe brindou durante muitas décadas. Mas não assenta a sua mundivisão na certeza de uma traição ocidental e nem numa "síndrome de cerco". O conflito armado para resgatar Taiwan é certamente uma possibilidade. Porém, tendo em conta os traços dominantes da competição sino-americana - que são principalmente de weaponização da globalização - e os vários incentivos positivos resultantes da forte interdependência sino-americana, parece-me pouco provável que isso aconteça nos próximos tempos. Além do mais, depois de ter visto os altos custos da intervenção russa na Ucrânia, parece-me que, para lá de uma retórica mais assertiva sobre Taiwan, por agora Pequim não está interessado em avançar para um conflito militar.
Um ataque a Taiwan envolveria sempre os EUA, que já prometeram defender a ilha. Mas para já a "guerra" entre China e EUA parece dar-se mais no mundo dos semicondutores. Se olharmos só para a Apple já temos uma ideia da complexidade desta relação: os iPhones da empresa americana são fabricados na China com microchips taiwaneses. O chamado Silicon Shield, o escudo protetor ligado à indústria dos semicondutores, é uma garantia tanto para a segurança de Taiwan, como para evitar um conflito entre as duas potências mundiais?
Isto entronca precisamente no que acabei de referir. O antagonismo entre os EUA e a China, tendo ficado claríssimo nos últimos tempos, e especialmente com a pandemia, tem características diferentes da rivalidade bipolar da Guerra Fria. Por isso não concordo com o estabelecimento de paralelismos diretos entre as duas situações históricas. A minha discrepância principal prende-se com o facto de a atual competição sino-americana acontecer num contexto de globalização avançada. A instrumentalização coerciva da interdependência global transformou-se na arma preferencial dos adversários. A "guerra dos chips" de que fala, e que é justificada por razões de segurança nacional, as retaliações comerciais por motivações políticas desenvolvidas pela China a inúmeros países, a pressão americana sobre os parceiros europeus para que estes defendam as suas infraestruturas críticas dos investimentos chineses, e tantos outros exemplos, são prova de que a competição entre as potências globais assumiu novos contornos. Felizmente o confronto militar entre as potências globais parece mais remoto, mas as consequências negativas da nova competição também são duras e vão pesar nas nossas vidas. Já estamos a sentir isso mesmo com a globalização do aumento dos preços dos alimentos e da energia.
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Xi esteve recentemente na Arábia Saudita. Agora que reabriu depois da covid, a China está a tentar aproximar-se dos velhos aliados dos EUA?
Essa é uma tática muito antiga. Aliás, no seguimento da crise económica da década passada, a China aproveitou para se aproximar e aprofundar os seus laços com os países tradicionalmente aliados dos EUA. Com evidente sucesso, como ficou demonstrado, por exemplo, a nível bilateral com o crescimento dos investimentos chineses em todos os países europeus, sendo Portugal um caso paradigmático. E a nível multilateral, com a adesão dos governos da Europa central e do leste ao Mecanismo 16+1 ou, antes disso, na atração de importantes países ocidentais para o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (AIIB). Quanto à aproximação chinesa à Arábia Saudita, penso que deve ser entendida tanto como resultado da estratégia continuada de projeção global de poder da China, quanto da retração dos Estados Unidos do grande Médio Oriente. Ora, numa lógica bipolar, qualquer vazio de poder é automaticamente suscetível de ser preenchido pela outra potência. Na atualidade, a Arábia Saudita é o principal parceiro comercial da China naquela região e o seu primeiro fornecedor de petróleo. Nos últimos anos a cooperação sino-saudita tem-se alargado a áreas tão diversas como os investimentos em infraestruturas, comunicações, alta tecnologia, finanças, transportes, energia renovável e nuclear, e produção de armas, sempre dentro do quadro da Belt and Road Initiative e da Visão Saudita do Reino 2030. Apesar de tudo, dois elementos têm moderado esta dinâmica. Um é a procura da China em também aprofundar relações com o Irão. E o outro é o facto da Arábia saudita não estar interessada em alienar completamente as suas relações preferenciais com os EUA, visto que estas lhe dão alavancagem no equilíbrio regional.
Depois de umas eleições intercalares em que manteve o controlo do Senado - mesmo assim sob ameaça, depois de uma senadora democrata ter passado a independente já depois das eleições - e de os republicanos terem conseguido uma curta vantagem na Câmara dos Representantes, Joe Biden enfrenta a segunda metade do mandato mais forte politicamente do que seria de esperar há uns meses?
Em bom rigor, Biden não ficou especialmente mais forte. Não ficou foi tão fraco como as sondagens pareciam apontar. Penso que nos próximos dois anos a sua governação vai continuar a encontrar dificuldades no estabelecimento de iniciativas capazes de angariarem apoio bipartidário - tarefa em que Biden, como senador, foi especialmente bem-sucedido. Isso encontra explicação tanto na forte polarização política que se mantém no país, como na Câmara dos Representantes ficar condicionada por uma efetiva maioria republicana.

Lívia Franco é professora e investigadora do IEP- Católica e Investigadora Associada do ECFR
Depois da covid, agora é a inflação e uma recessão mundial. Este é também o maior desafio para os EUA de Biden este ano, tal como para a China?
Em certa medida sim. Sabemos que os eleitores norte-americanos são especialmente sensíveis à economia e ao impacto quotidiano que esta tem nos seus orçamentos familiares. Por isso a inflação, especialmente quando persistente como acontece agora, é um tema tão sensível e com tanto eco político. Ironicamente a economia norte-americana continua a mostrar também sinais de grande vitalidade, como o desemprego baixíssimo, salários altos e um nível de consumo bastante resiliente. Há por isso indicadores de sinais contrário que sugerem uma condução cuidadosa da economia, especialmente num contexto global de abrandamento.
Do lado republicano, Trump continua a mover influências, surgiu a figura de Ron DeSantis, que as sondagens dão como vencedor das Presidenciais em 2024. É de esperar nova candidatura de Biden, apesar da idade? Ou um regresso de Trump? Na relação futura com a China faz muita diferença quem está na Casa Branca - um republicano ou um democrata?
Neste domínio parece-me que tudo está em aberto. A corrida presidencial de 2024 tanto pode ser uma repetição Biden-Trump, como ter um elenco de candidatos novos. Ao dia de hoje, diria que apesar da sua idade e das limitações evidentes, o Partido Democrata leva a sério a possibilidade de reeleger Biden. Quanto a Trump, parece-me bastante menos provável que seja o próximo candidato republicano, quer porque existem outras figuras mais concorrenciais, como DeSantis, quer pela recomendação unânime da Comissão sobre os acontecimentos do 6 de Janeiro de que o anterior presidente seja julgado por insurreição. Mas muita coisa pode acontecer nos próximos dois anos, além de que as Primárias trazem muitas vezes surpresas. O essencial é notar que se há área da política externa norte-americana onde a linha de continuidade é manifesta, é a da relação com a China. Biden não fez nenhuma alteração substantiva neste domínio quando chegou à Casa Branca, nem há indicadores de que isso possa vir a acontecer.
Como é que o prolongar da guerra na Ucrânia afeta o equilíbrio de relações com a Rússia tanto dos EUA como da China?
Os EUA continuarão a desenvolver uma política de contenção da Rússia e a defender uma ordem internacional assente no Direito Internacional. Querem evitar o alargamento da guerra a outros países, sobretudo aos aliados NATO, bem como assegurar que a Ucrânia não seja derrotada. Washington é também muito consciente da centralidade da dissuasão nuclear para a contenção de Moscovo. Mas a sua prioridade máxima continua a ser a rivalidade com Pequim. Já a China, procurará, simultaneamente, tirar partido da sua pareceria estratégica com a Rússia - obtendo o máximo proveito da fragilidade desta - e não deixar que a guerra afete em demasia as suas relações com o Ocidente e o seu protagonismo no mercado global. Também os EUA são mais relevantes para Pequim do que a Rússia.
Voltando à energia: com a Europa a lidar com uma guerra às suas portas e com os resultantes problemas de abastecimento energético, e a China a ser deficitária nesta área, os EUA - que nos últimos anos apostaram no petróleo próprio e no gás de xisto, reduzindo a dependência externa - estão em grande vantagem competitiva para os próximos anos, prometendo manter o título de maior superpotência mundial?
Diria que os EUA estão bem posicionados nesta matéria, pois souberam diversificar os seus fornecedores e explorar outro tipo de recursos energéticos, ao mesmo tempo que garantiam o armazenamento considerável de stocks próprios. Deste modo, conseguiram reduzir a sua dependência e resolver parte da sua vulnerabilidade, enquanto, pelo caminho, se transformavam em importantes produtores mundiais de energia. Gostaria, porém, de juntar duas ressalvas a esta leitura, uma a curto e a outra a médio e longo prazo. A primeira é que a China tem também sabido explorar as oportunidades oferecidas pela atual situação, conseguindo garantir gás e petróleo a preços bem abaixo dos seus valores de mercado. O reforço das suas relações com a Rússia e a Arábia Saudita são disso exemplo. A segunda tem a ver com o desafio da descarbonização. Apesar dos esforços de Biden, considerando o tradicional way of life dos americanos, não é evidente o ritmo e a extensão deste processo naquele país. Isto pode vir a constituir um elemento de fragilidade no futuro próximo.
A China está a viver uma crise demográfica, com uma população a envelhecer e a diminuir o crescimento. Já os EUA têm uma população jovem e em crescimento. Estas duas tendências contrárias vão ser essenciais para determinar quem vai dominar o mundo no futuro?
Claro que sim, mas devemos ter em conta que se tratam de realidades diferentes. A China é, de facto, a nação mais populosa, com 1,4 mil milhões de habitantes, quase 18,5% da população mundial, enquanto os EUA têm "apenas" 335 milhões de cidadãos, cerca de 4% da população mundial. Curiosamente, nos dois países, a idade média é a mesma, 38 anos. Mas sendo o volume populacional um fator de poder, nunca deve ser considerado de modo absoluto. Neste particular, não interessa tanto a quantidade, mas sim a qualidade. Por isso a questão do predomínio de um ou outro país põe-se mais ao nível da instrução e da preparação técnica da população do que do seu peso numérico. Olhando para os rankings internacionais das melhores universidades e centros de investigação e desenvolvimento (R &D), constatamos uma clara superioridade das instituições norte-americanas, mas também que cada vez aparecem mais instituições chinesas. Isto é que determinará o vencedor no futuro.
helena.r.tecedeiro@dn.pt
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