Presença habitual nos lares dos portugueses há décadas através dos comentários televisivos, Nuno Rogeiro, de 65 anos, mantém na SIC Notícias o programa Leste-Oeste e, mais recentemente, Guerra Fria, com José Milhazes, além do espaço de opinião na Sábado. Ao que se juntam os livros: com A Verdadeira Guerra de fresco nos escaparates, informa que se seguirá uma segunda parte, sobre o fim da guerra e o making of desta, enquanto ultima um projeto que lhe leva 15 anos, Introdução à História das Ideias Políticas, obra planeada para 10 volumes..Ponto prévio: A Verdadeira Guerra do título refere-se à Ucrânia ou também é uma menção à necessidade de Portugal se dotar de meios de defesa? Não, estamos a falar propriamente da guerra. Todos os conflitos que tivemos até agora são, digamos assim, dilacerações de um outro tipo. Ou são conflitos localizados, ou são guerras civis, ou são aquilo a que se chama de guerras de baixa intensidade, ou são as guerras de estratégia indireta, ou as guerras atípicas. Esta é uma verdadeira guerra no sentido daquilo que aprendemos nos livros, aquilo a que se chamava a polemologia, a teoria do conflito, as guerras clássicas, entre exércitos nacionais organizados, com todo os meios de destruição possíveis e imaginários, com a introdução praticamente mensal de novas tecnologias, com a construção de dois tipos de conflito: ideológico e territorial. E depois uma verdadeira guerra no sentido em que há dois blocos internacionais, o de aliados da Ucrânia, e o minibloco que neste momento é constituído por um estado suserano e um estado vassalo, a Bielorrússia, e vamos ver, a Coreia do Norte, que é um problema em evolução..Apesar de ser uma verdadeira guerra, não foi declarada. É um problema que pragueja todos os conflitos. Não há praticamente declarações de guerra desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A Carta das Nações Unidas, ao contrário do que as pessoas julgam, não autoriza a guerra, nem defensiva nem ofensiva. E nem fala na palavra guerra, apenas em agressão e em defesa coletiva. A verdade é que materialmente as guerras existem e esta é não declarada do ponto de vista jurídico. Durante um certo tempo viveu-se uma espécie de ocaso: a Rússia estava a preparar as ações ofensivas e ao mesmo tempo tinha embaixada em Kiev e a Ucrânia tinha embaixada em Moscovo. Além disso, até há relativamente pouco tempo a Ucrânia tinha um embaixador na Bielorrússia. Vivemos numa zona de grande ambiguidade e a própria Rússia, para não se embrenhar no problema do direito internacional, optou pela tal ideia da operação militar especial. Assim como os EUA e outros países optaram por outras designações nas intervenções na Síria, no Afeganistão e no Iraque, aqui o que se tratou foi de fingir que era uma operação de polícia ou de intervenção humanitária. Há agora uma tradição de não chamar guerra à guerra..Citaçãocitacao"[Portugal tem] falta de pessoal, falta de equipamento adequado e falta das chamadas reservas de guerra (...) A tudo isto se junta uma grande, grande, grande desorganização orçamental." .O livro é uma análise e previsão de desenlaces da guerra e também uma análise do estado da defesa nacional. Porquê juntar os dois temas? Há 20 anos publiquei Guerra em Paz, uma análise sobre a defesa nacional no século XX, mas com uma reflexão histórica, e marcado pelo espectro do 11 de Setembro. Achei que era interessante refletir de novo sobre a defesa nacional e se está ou não influenciada por esta guerra que, quer queiramos quer não, vai marcar a vida de todas as pessoas do mundo, mesmo daquelas que julgam não ter nada a ver com o assunto. A nossa defesa estava ou não preparada para este choque? A resposta está no livro..Podemos levantar um pouco o véu. Concluiu que nos dois anos anteriores a defesa nacional bateu no fundo. O que é mais grave, a falta de soldados e a sua desproporção para com os quadros superiores, ou a falta de material? Diria que são três coisas: falta de pessoal, falta de equipamento adequado, e falta das chamadas reservas de guerra, que é um problema que afeta toda a Europa e toda a NATO. Uma das razões que leva os países aliados da Ucrânia a demorarem tanto tempo a darem o material que prometeram é precisamente o facto de não terem reservas. A guerra pôs a nu as grandes deficiências do sistema de defesa, também dos EUA, mas sobretudo da UE. Quando falamos de reservas de guerra são munições, equipamentos sobresselentes, combustível, sistemas sofisticados de eletrónica, tudo aquilo que se tem de ter se o principal for destruído. A verdade é que não tínhamos e não pudemos dar aquilo que poderíamos. O problema do pessoal é grave. Não é tão grave no exército como há 50 anos porque hoje é mais tecnológico e pode ser desempenhado por menos pessoas. Um exército moderno tem menos homens, mas além disso há a tal desproporção e o problema dos salários e das motivações. O que pode levar um mancebo para as forças armadas e o que o pode lá deixar? Além do espírito de serviço e o espírito patriótico, que é difícil de materializar se não tiver muitas coisas para fazer. E é por isso que as forças armadas, para compensar a falta de vocações, se embrenharam em muitas operações internacionais, de manutenção de paz, etc., que pelo menos mostravam que as forças armadas servem para alguma coisa. A isto tudo se junta uma grande, grande, grande desorganização orçamental. O atual sistema é errado, a lei de programação militar não faz sentido. Defendo uma espécie de fundo militar permanente fiscalizado pelo Tribunal de Contas, administrado de forma contínua..Se tivesse uma lista de compras para a Defesa, o que incluiria? Portugal é um pequeno retângulo na Europa, mas cercado de um grande espaço aéreo e marítimo, onde está uma das maiores zonas de busca e salvamento do mundo, uma zona económica exclusiva. Parece evidente que a aposta tem de ser em meios navais e meios aéreos, o mais possível de uso duplo, para fins militares e para situações de emergência. Temos um arquipélago em que se houver um cataclismo precisamos de meios navais para retirar pessoas..Portugal não tem sequer um navio-hospital. Há um navio polivalente logístico planeado há décadas. Em princípio esse plano vai ser reativado, mas a verdade é que não existe e é muito importante um navio com hospital, para transporte de pessoal, de equipamento, de helicópteros, drones, etc..Citaçãocitacao"O F-16 é o ideal para os ucranianos. O problema é que precisava de muitos, 120, há quem diga 200. O MNE Kuleba disse-me que precisavam de 70 a 80, Zelensky disse-me através de uma pessoa amiga que precisam de 120. Enfim, não vai acontecer nos tempos mais próximos.".Nos últimos dias tem havido alguns avanços da Ucrânia a leste e a sul, além de ataques à Crimeia. Poderá haver novidades na contraofensiva antes da chegada do general inverno? A tarefa da Ucrânia é colossal porque está a combater com o aparelho central russo. A guerra hoje é entre a Ucrânia e a Rússia em território que esta considera seu. Já não são territórios a que está a prestar auxílio, constitucionalmente são parte da Rússia. Estima-se que 80% do atual potencial russo esteja na Ucrânia ou à sua volta. Não estamos a falar do que no papel são as forças armadas, estamos a falar daquilo que operacionalmente existe. O que demonstra que, se de facto a Rússia tivesse receio dos vizinhos da NATO, não desguarnecia as fronteiras. Por outro lado, a tarefa dos ucranianos é gigantesca porque é uma guerra de ricos contra pobres. É evidente que aqui os pobres são os ucranianos, ajudados por ricos. Os ucranianos são ajudados um bocadinho a conta-gotas. Dos 830 carros de combate prometidos pelos aliados, cerca de 300 ainda não chegaram. Por causa das deficiências da ajuda à Ucrânia, a Rússia teve seis meses para construir a sua linha Maginot feita das famosas linhas de trincheiras, dentes de dragão, campos minados, casamatas, bunkers, bases de munições camufladas, postos de sniping, artilharia que está debaixo de terra, ou seja, os ucranianos têm à sua frente um dos maiores dispositivos da história moderna. Para um país que tinha poucos meios torna a tarefa dificílima. E por outro lado, os ucranianos não têm o famoso apoio aéreo em quantidade. Hoje poderão mobilizar 75 aviões e talvez 40 helicópteros, em números otimistas. O F-16 é o ideal para os ucranianos porque num processo gerido pelo piloto transforma-se num avião de defesa aérea, de defesa contra outros aviões ou mísseis, num avião de ataque ao solo. O problema é que precisava de muitos, 120, há quem diga 200. O MNE Kuleba disse-me que precisavam de 70 a 80, Zelensky disse-me através de uma pessoa amiga que precisam de 120. Enfim, não vai acontecer nos tempos mais próximos. Tudo isto explica a lentidão da progressão, mas há dois elementos para os ucranianos: a parte territorial, e aí os resultados são quase nulos; o outro, a destruição do potencial russo, e aí os resultados são enormes. Não sabemos exatamente como a Rússia vai repor o material e homens. Desde o início da contraofensiva, os ucranianos estão com metade a um terço da perdas russas. Em destruição, penso que os ucranianos estão a fazer um trabalho bom do ponto de vista do interesse nacional. Aquele que defende, em princípio, tem menos perdas do que aquele que ataca e está a acontecer o contrário, o que mostra que os ucranianos estão a utilizar métodos que provavelmente não eram típicos. Por exemplo, não estão a usar os carros de combate que receberam em grandes frentes de ataque..Apesar de os EUA serem o aliado que mais tem contribuído com armas, o presidente Biden tem estado relutante em entregar algumas tecnologias. Como se explica isto? Os HIMARS, os Patriot, os F-16 e os ATACMS eram essenciais para os ucranianos, mas a ideia de que esta guerra é feita pelos norte-americanos é totalmente falsa. Esta guerra é feita pelos ucranianos a tentarem extrair o máximo aos norte-americanos, o que é diferente..E nem sempre estão de acordo. Assim como a Rússia tem o complexo da antiga superpotência, os EUA sabem que são uma superpotência e têm outros problemas no mundo, têm de olhar para uma série de tabuleiros e a Ucrânia não é a única prioridade. O segundo argumento, que não sei se é de má-fé, era de não poder dar sistemas avançados porque os ucranianos não sabiam usá-los e que iria demorar muito tempo para aprenderem. Esse argumento caiu pela base porque os ucranianos, por causa da tradição de indústria tecnológica e de defesa, e também porque é um país guerreiro. Os cossacos não são originários da Rússia, são daquela região. Como dizia o Trotsky, toda a gente na Ucrânia tem armas menos as autoridades, todas as pessoas sabem disparar uma espingarda. Terceiro argumento: não podemos irritar a Rússia. Mas para os ucranianos se defenderem convenientemente tinham de atacar os centros de decisão russos que ordenam os ataques de mísseis. Último argumento: a classe política americana está dividida em relação às ajudas, que havia um forte lóbi no Partido Republicano contra uma ajuda maciça. Já vimos que não é bem assim. O que os republicanos têm dito, exceto uma minoria vociferante que não sabemos que interesses servem, é que estão dispostos a dar o mesmo nível de ajuda mas com maior fiscalização. Isto pode não ser totalmente errado. Na realidade, uma das frentes de batalha de Zelensky é o de justificar todos os milhões que gasta em Defesa e mais cedo ou mais tarde vai ser avaliado pelos ucranianos se der algum passo em falso. Independentemente de entrar ou não na NATO, a Ucrânia quer sair do velho modelo soviético. A Ucrânia concentrava o maior número das indústrias de defesa da URSS, da Antonov às fábricas de eletrónica, as maiores fábricas de mísseis estavam na Ucrânia. Uma das primeiras coisas que a Rússia tentou foi destruir os centros de investigação e pesquisa e de produção dos ucranianos. Mas estes tinham tido tempo desde 2014 de construir aquilo a que se chama a segunda Ucrânia: subterrâneos, campos de aviação camuflados, cidades fantasma, dezenas de milhares de veículos que não existem. Essa segunda Ucrânia foi muito mal avaliada pela Rússia e um dos responsáveis é o FSB, os serviços de informações. Se tivessem sido os serviços militares, provavelmente teriam levado a Rússia a ter uma intervenção mais cautelosa ou a protelar a invasão. Mas se a Rússia demorasse muitos anos a Ucrânia já se tinha transformado numa potência militar..Citaçãocitacao"Eles [ucranianos] estão preparados para deixarem de receber essa ajuda [dos EUA]. Há outros países não ocidentais que não se importariam de fornecer armas e munições.".Até agora o Ocidente coletivo, como diz a Rússia, tem estado em sintonia, exceto a Hungria, no apoio à Ucrânia. Mas as eleições podem mudar tudo, as primeiras já na Eslováquia, onde o ex-PM Fico tem um discurso pró-russo. O que poderá acontecer se, por exemplo, Donald Trump for eleito? Esta guerra é dos ucranianos. Se não fossem ajudados continuavam a manter a guerra. Demoravam mais tempo, sem dúvida, e se calhar usavam táticas diferentes e mais devastadoras para eles próprios, por exemplo, guerra subversiva, terrorismo. Provavelmente perderiam a simpatia do mundo, mas é uma guerra dos ucranianos pelo seu território. Eles estão preparados para deixarem de receber essa ajuda. Posso dizer uma coisa: há outros países sem serem ocidentais que não se importariam de fornecer armas e munições. No programa de desenvolvimento do míssil Neptune participaram pelo menos dois países que não são europeus nem da NATO, são países do Médio Oriente. Polémico, sem dúvida, mas só o fará se perder o apoio do Ocidente. Donald Trump obviamente olha de uma maneira diferente de Joe Biden. Enquanto este ouve mais os militares e os estrategas, Trump ouve-se a ele próprio e a uma certa noção empresarial, mas uma coisa é não ser tão entusiástico com Zelensky, outra é criar uma aliança com Putin e isso é totalmente falso. Acho que posso dar isto em primeira mão: o que Trump tinha como plano para dissuadir a Rússia? Entre os planos que foram estudados, um deles era colocar unidades militares na Ucrânia para entrar em exercícios com as forças ucranianas logo que se soubesse que a Rússia podia estar a preparar-se para invadir. A ideia era esperar que a Rússia não atacasse enquanto lá estivessem as tropas, e foi aceite por Trump. Este percebe de uma forma um bocadinho brutal qual a diferença entre dizer que se vai colocar um carro de combate num sítio e colocá-lo. Biden tem um espírito mais florentino..Como vê a China neste conflito? A China é um livro em aberto. Se os EUA pregarem sermões à China, a China fará o contrário. Algumas pessoas na carreira diplomática dos EUA percebem isso, outras dão a ideia que fazem de propósito para afastarem a China. A China não tem qualquer problema com a Ucrânia, aliás quer ser um grande investidor na Ucrânia e não quer hostilizar a Ucrânia, tal como não quis hostilizar a Rússia. Se a Rússia fosse amiga dos EUA, a China não teria problemas em dizer coisas más da Rússia. Como a Rússia aparece como adversário dos EUA, a China não quer dar trunfos suplementares aos Estados Unidos. Mas as relações entre a China e a Rússia são simples: a primeira é uma superpotência em potência ou já o é, e a Rússia não é e os chineses não querem humilhar mais a Rússia. Dizem que são amigos, dão pancadas nas costas, bebem chá e fazem declarações políticas, mas se formos espremer bem as coisas não há grandes ajudas. Ainda agora proibiram a venda de drones comerciais à Rússia. E há o plano chinês de paz que contempla a saída das tropas russas do território ucraniano..Pequim verá com incómodo a aproximação da Rússia com a Coreia do Norte? A Rússia ficaria num estado muito complicado se, como membro do Conselho de Segurança da ONU, violasse as sanções. Kim Jong-un dá a ideia que viajou à procura de material militar em relação ao qual não tem dinheiro. O que Pyongyang queria era material russo moderno dado, comida, que dessem emprego a trabalhadores norte-coreanos, mas tudo isto é incerto. A Rússia também perdeu uma grande parte do complexo militar industrial, não tem muito para dar..A Verdadeira Guerra Nuno Rogeiro Dom Quixote 630 páginas.cesar.avo@dn.pt