A fundadora da organização não-governamental vencedora do Nobel da Paz e representante da Ucrânia na atribuição do Sakharov 2022, Oleksandra Matviychuk, considera incompreensível que o ocidente diga que a guerra contra a Rússia defende toda a Europa, mas não forneça mais armas modernas.."Eu sei que muitos países têm veículos blindados, têm caças, têm sistemas de defesa aérea, mas ainda hesitam. Se dizem que estamos a lutar por toda a Europa, por que não nos fornecem armas?", questionou a advogada de direitos humanos, em entrevista à Lusa, à margem da cerimónia de entrega do Prémio Sakharov, atribuído na quarta-feira pelo Parlamento Europeu, em Estrasburgo, França.."Não pedimos que lutem connosco contra os russos, podemos fazer isso por nós mesmos. Mas, por favor, forneçam-nos armas para fazê-lo. Não o fazerem é uma coisa que eu não consigo entender", lamentou, referindo que, nas notícias, parece que os países ocidentais deram à Ucrânia tudo o que este país precisava para combater a invasão russa.."Infelizmente, não. Ainda temos uma enorme necessidade de armas modernas", avançou Oleksandra Matviychuk, fundadora da organização de defesa dos direitos humanos Centro de Liberdades Civis da Ucrânia..Para explicar o apelo, a ativista contou uma história pessoal.."Tenho uma amiga que se juntou ao exército quando a Rússia começou esta guerra, em 2014. Ela é extremamente corajosa e quando a invasão em grande escala começou, voltou para o exército. Deixou o seu filho de seis anos e continuou a lutar para que ele tivesse um futuro de paz. Ela estava entre os defensores ucranianos que libertaram a região de Kharkiv. Participou na batalha pelo filho. Há uma semana foi [vítima] da explosão de uma mina [apesar de] estar num carro civil", lembrou, sublinhando que a Ucrânia ainda usa carros civis para combater.."Não temos veículos armados suficientes. Se tivéssemos veículos blindados, a minha amiga não estaria agora numa cama de hospital a lutar pela vida"..Apesar de garantir que "pessoalmente, até percebe" que a aliança militar NATO não se queira envolver diretamente na guerra, a advogada garante que a Ucrânia apenas precisa de mais ajuda.."Entendo que é nossa obrigação lutar contra os ocupantes. Mas o que pedimos é para não nos deixarem lutar de mãos vazias", afirmou..Segundo defendeu, os políticos que tomam decisões têm de ser chamados à razão e isso passa por formar movimentos populares.."Sermos ouvidos depende de quantas pessoas conseguimos mobilizar no apelo geral por justiça. Foi por isso que no meu discurso do Nobel também falei sobre movimentos, sobre cooperação horizontal, sobre solidariedade, sobre iniciativas conjuntas", explicou..Para Oleksandra Matviychuk, o futuro da Europa passa pelas pessoas comuns e pelas suas decisões.."Se os nossos bravos colegas russos defensores dos direitos humanos [co-vencedores do Prémio Nobel], que apenas têm as suas palavras, decidiram chamar abertamente as coisas pelo nome -- falaram da guerra como guerra e das atrocidades como atrocidades -, pessoas que têm muito mais instrumentos podem organizar manifestações, podem instar os seus governos a apoiar a Ucrânia e a fornecer mais armas e assistência económica", referiu a ativista..Mas não só. Pessoas comuns "podem tomar uma decisão muito simples: dizer que não querem que o seu país compre gasolina à Rússia porque a liberdade vale a pena", disse.."Isto não é uma escolha entre dois tipos de gás e dois tipos de preço. É uma escolha entre apoiar o modelo autoritário ou apoiar a democracia", acrescentou.."A Europa tem a opção de decidir entre algum desconforto hoje ou uma catástrofe amanhã. Esta é escolha para derrotar Putin e acabar com a tentativa da Rússia de restaurar o império russo"..As "pessoas comuns" são, aliás, aquilo que a ativista ucraniana considera a sua inspiração.."Quando as tropas russas tentaram cercar Kiev, as organizações internacionais retiraram imediatamente o seu pessoal. Mesmo aqueles que deveriam estar connosco e fornecer ajuda humanitária monitorizando a violação dos direitos humanos. Fizemos um apelo, em março, para que, por favor, voltassem. Não voltaram. Mas as pessoas comuns ficaram. Ajudam-se umas às outras", disse a fundadora da organização vencedora de dois dos mais importantes prémios de defesa da paz, que também se vê como uma pessoa comum.."Eu também me recusei a sair do país", referiu, admitindo que receber o Nobel da Paz lhe trouxe uma nova responsabilidade porque a distinção "proporciona uma oportunidade única de se ser ouvida"..leksandra Matviychuk afirmou à Lusa que os julgamentos que a Ucrânia pretende para os crimes de guerra russos não são idênticos aos de Nuremberga, porque devem acontecer já, antes de a guerra terminar.."Os julgamentos de Nuremberga julgaram criminosos de guerra somente depois de o regime nazi ter entrado em colapso. Mas a justiça agora não pode esperar", defendeu a advogada..Matviychuk explicou que o tribunal especial para os crimes de guerra russos na Ucrânia, que defende em conjunto com o Governo do seu país, "deve ser estabelecido de imediato".."Os julgamentos de Nuremberga, após a Segunda Guerra Mundial, constituíram um passo essencial para estabelecer a lei e a justiça", mas, segundo frisou a ativista, foi preciso esperar pelo fim da guerra para responsabilizar os criminosos..No atual caso da guerra na Ucrânia, "é preciso iniciar já todos os preparativos e procedimentos legais para responsabilizar os perpetradores russos", defendeu.."Um crime de guerra não precisa de ser investigado durante anos. É muito visível. Quando este tribunal especial for estabelecido - com o aval da ONU ou do Conselho da Europa ou da União Europeia, porque podem ser modelos diferentes -- vai levar apenas alguns meses para serem conhecidas todas as evidências", explicou a advogada..Oleksandra Matviychuk tem defendido a ideia, anunciada inicialmente pelo Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, de ser constituído um tribunal especial para julgar a Rússia e de atualizar o sistema internacional de paz e segurança para impedir atos de agressão idênticos aos cometidos por Moscovo.."A minha intenção é elaborar um mecanismo que possa fornecer justiça a todas as vítimas das atrocidades russas, porque as atividades do Tribunal Penal Internacional são muito importantes, mas limitadas a apenas alguns casos selecionados", referiu.."Se vivo no século XXI, se digo que a vida de cada pessoa importa, se temos tecnologias digitais que nos podem ajudar a documentar, a identificar os criminosos, a reunir provas sólidas, temos que desenvolver o nosso sistema jurídico para atingir esse objetivo", defendeu a fundadora e líder da organização de defesa dos direitos humanos Centro de Liberdades Civis da Ucrânia..Para conseguir alcançar este objetivo, "o Governo ucraniano promoveu a ideia da criação de um tribunal especial e nós apoiamos isso porque, infelizmente, no momento atual, não há outros órgãos internacionais que possam tratar de crimes de guerra. É uma lacuna de responsabilidade", explicou..Os julgamentos defendidos por Kiev devem acontecer, de acordo com Oleksandra Matviychuk, na Ucrânia e devem permitir que todas as vítimas sejam apoiadas.."Eu, que trabalho diretamente com as pessoas, sei que elas precisam restaurar não apenas as suas vidas destruídas e a sua visão estilhaçada do futuro, mas voltar a acreditar que a justiça existe", salientou a advogada, para quem a pena que deve ser atribuída ao Presidente russo, Vladimir Putin, é a "prisão perpétua".."Colocamos em todas as convenções e constituições o slogan de que a vida de cada pessoa importa, mas temos que pôr isto em prática, não deixar apenas no papel", prosseguiu..A luta de Oleksandra Matviychuk para criar este novo sistema de justiça deve-se, como admitiu, ao receio de que o comportamento russo se torne um exemplo para líderes autoritários de outros países.."Não temos um sistema internacional que garanta paz e segurança. Nem a ONU conseguiu impedir as atrocidades russas e isso mostra a outros líderes autoritários que podem fazer a mesma tentativa de ditar as regras do jogo à força", alertou.."No meu discurso do Nobel [recebido no sábado passado], falei sobre a responsabilidade histórica de começar a projetar essa nova arquitetura para todas as pessoas no mundo, não apenas para os ucranianos. Talvez seja tarde demais para nós. Já estamos numa guerra, mas temos de dar garantias de segurança e direitos humanos a todos os cidadãos do mundo, independentemente de residirem ou não num país que pertence a algum bloco militar ou numa grande potência militar", considerou..Não o fazer, defendeu, "será um desenvolvimento muito perigoso da humanidade porque se tornou muito visível que a lei não funciona", que vai conduzir a uma repetição da História, com "a ONU a ter o mesmo destino que teve a Liga das Nações"..Também conhecida como Sociedade das Nações, a Liga foi uma organização internacional criada em 1919 pelos países vencedores da Primeira Guerra Mundial, que visava assegurar a paz no mundo, tendo o fracasso deste objetivo levado à sua extinção em 1942.."Temos de fazer alguma coisa", sublinhou ainda a advogada, defendendo que "o primeiro passo deve ser expulsar a Rússia do Conselho de Segurança das Nações Unidas por violação sistemática da carta da ONU"..A Rússia é um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e tem poder de veto..Isto servirá "para dar um sinal aos líderes autoritários do mundo de que serão punidos" se levarem a cabo agressões contra outros países e culturas, finalizou Oleksandra Matviychuk..A ativista dos direitos humanos que representou esta semana no Parlamento Europeu o "corajoso povo ucraniano", vencedor do Prémio Sakharov 2022, garante que a Rússia está a praticar genocídio no seu país e quer ver o conceito atualizado.."O significado de genocídio não está totalmente atualizado no direito internacional, mas é muito lógico: se se quer destruir total ou parcialmente um grupo étnico, não é preciso matar todas as pessoas, pode-se mudar a sua identidade e o grupo desaparecerá", defendeu Oleksandra Matviychuk..A ativista denuncia que os russos praticam genocídio nos territórios ocupados da Ucrânia. "Eles proíbem a natureza ucraniana. Fornecem crianças ucranianas para adoções forçadas. Fornecem toda a educação com os chamados padrões russos. Quando falei com professores de uma escola sob ocupação, disseram-me que a primeira coisa que os soldados russos pediram nas escolas foi para lhes entregarem todos os livros de História ucraniana. Portanto, querem apagar na totalidade a identidade ucraniana", descreveu..Segundo adiantou, a Rússia quer, à força, fazer as pessoas acreditarem que não são ucranianas, são russas.."Isto é um genocídio, porque se tiverem sucesso nessa política, cumprirão o seu objetivo total ou parcialmente, destruindo grupos étnicos nas suas próprias terras", afirmou..Para Oleksandra Matviychuk, é preciso desenvolver as leis internacionais e voltar a dar ao conceito de genocídio o significado que foi pensado pelos fundadores do termo.."Muitos advogados com quem falei avisaram-me que isso é muito difícil porque há poucos precedentes. Mas no século passado também era muito difícil imaginar que haveria uma organização internacional que poderia interferir nos assuntos da vida interna de Estados que violam massivamente os direitos humanos. A ideia também era chocante e foi marginalizada. Por que é que agora ainda temos esta barreira mental?", questionou..Sublinhando não ter "qualquer dúvida" que a Rússia ocupará outros países se não for travada na Ucrânia, a ativista defendeu que se trata de um problema cultural.."O problema é que esta não é a guerra do [Presidente da Federação Russa, Vladimir] Putin, é uma guerra da nação russa", defendeu..Segundo referiu a advogada, "Putin governa o país não apenas com repressão e censura, mas com um contrato social especial baseado na chamada 'glória russa' e na Rússia como uma nação imperialista"..Os russos "acham que a 'glória da Rússia' é restaurar, nem que seja à força, o império soviético. É por isso que concordam com a ida de tropas para território de outros países", disse..Um conceito que Oleksandra Matviychuk acha "muito difícil explicar para pessoas com outra mentalidade", mas que compara à crença de algumas pessoas de que a Terra não é redonda, mas sim plana.."Faz parte da cultura russa e merece uma reflexão histórica. Mas isso significa que, se não se conseguir deter Putin na Ucrânia, ele irá mais longe. Só o sucesso da Ucrânia pode levar a Rússia, como nação, a repensar o que é a 'glória russa'", defendeu..De acordo com a ativista, a coragem do povo ucraniano, que lhe valeu a atribuição pelo Parlamento Europeu do Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento 2022, baseia-se "em valores".."Estamos a lutar com os russos pela nossa independência há séculos. E quando se tenta fazer uma investigação sociológica para perceber como é que ainda existimos - depois do império russo, depois da União Soviética, depois de Holodomor, que foi o genocídio de milhões de pessoas à fome, depois da repressão, quando os russos mataram toda uma elite de escritores e historiadores --, o que vemos é que as pessoas têm como principal valor a liberdade", argumentou.."É algo muito difícil de explicar porque não é materializável, tem a ver com espírito", concluiu.