José Maria Neves: "Podemos ter em Cabo Verde a nossa sonangol do vento"

Foi primeiro-ministro e é desde o ano passado presidente do pequeno país africano de língua oficial portuguesa. No âmbito da Cimeira Lusófona da Liderança, dá a sua visão sobre a democracia, o desenvolvimento económico e o futuro do país, com pessoas e liderança em destaque. E realça o papel da cooperação internacional.

A distância não é impeditiva de uma conversa franca e próxima sobre as pontes construídas entre Portugal e Cabo Verde e a aprendizagem política, económica e social de um arquipélago que nada tem e tem tudo. Sem recursos naturais valiosos, como as matérias-primas, dispõe, porém, de boa infraestrutura turística, humana e digital. A ligação virtual por vídeo fez-se entre a Ilha de São Vicente, onde estava o presidente da República de Cabo Verde, e Fátima, onde estava a entrevistadora, sem percalços. A conversa decorreu no âmbito da Cimeira Lusófona da Liderança.

O senhor presidente tem apostado numa mensagem de reforço do desenvolvimento de Cabo Verde, de esforço nacional, de recuperação pós-pandemia, e sempre com olhos postos na lusofonia. Elogia a força da democracia e deseja menos crispação política, mensagem importante para a CPLP. Recentemente, em entrevista ao DN afirmou que a diáspora tem contribuído para Cabo Verde não só com remessas, mas com ideias valiosas. Que importância concreta tem tido a diáspora no desenvolvimento do arquipélago?
A diáspora tem um papel extraordinariamente importante para Cabo Verde. Aliás, somos migrantes antes de sermos cabo-verdianos, viemos de vários continentes, particularmente da costa ocidental africana e da Europa. Foram estas pessoas que deram origem aos filhos da terra, aos cabo-verdianos e, depois, esses cabo-verdianos espalharam-se pelos quatro cantos do mundo, tendo desde o início contribuído para a abertura de Cabo Verde ao mundo e também para, através das remessas financeiras, para acudir às famílias e contribuir para o crescimento e desenvolvimento de Cabo Verde.

Mas além das remessas financeiras, também temos as remessas espirituais, as ideias, as propostas, e a diáspora tem sido um canal fundamental para a criação do vigor intelectual dos cabo-verdianos. Veja-se, por exemplo, a empresa dos Lazaredos que nasce na Ilha Brava, trazida por cabo-verdianos que emigraram para os Estados Unidos da América. Se hoje temos esse vigor na nossa democracia, se somos amantes da liberdade e da democracia, se somos um país cosmopolita, um país que doa e recebe de todo o mundo tudo o que de melhor existe em termos de pensamento, tem a ver com essa nossa diáspora. Por isso, do ponto de vista económico, social, cultural, e político, a diáspora tem um papel fundamental no crescimento e desenvolvimento de Cabo Verde.

O senhor presidente, enquanto foi primeiro-ministro, durante 15 anos teve a experiência de coabitar com um presidente que vinha de outra área política. Agora acontece exatamente o mesmo, mas noutro cargo e circunstância.
Que lições podemos tirar desta coabitação para levarmos ao mundo esta lição de coabitação, de fazer pontes -- que lições retirar?

Isso é muito interessante porque permite-nos concretizar a Constituição em termos de separação e interdependência de poderes. Mostra-nos que aqui a interdependência é importante, a cooperação, a partilha, e a busca de entendimento são importantes. O presidente, enquanto árbitro e moderador do sistema político, é quem deve ser o elemento essencial na construção de entendimentos e consensos. E é fundamental que o presidente da República, como tem um conjunto de poderes que partilha com outros órgãos de soberania, poder buscar essas pontes e consensos para que a democracia possa funcionar. A democracia é antagonismo de opiniões, a democracia é divergência, mas também é compromisso, entendimento e consenso. E no quadro de funcionamento do sistema de governo, há que procurar espaços para que as divergências possam irromper naturalmente no espaço público, mas também que haja espaço para convergências. O nosso sistema de governo, mesmo na coabitação, permite esta ideia nobre da realização da política e da democracia.

Sabemos que quem manda no governo é o ministro das Finanças e, durante muito tempo, a ministra das Finanças foi, talvez não uma Dama de Ferro, mas uma Dama de Prata.

Cabo Verde é muito elogiado como um exemplo de democracia, de paz política, e de abertura ao multipartidarismo, particularmente a partir de 1991. Nessa altura o MPD ganhou as legislativas e as presidenciais, mas no ciclo seguinte é o PAICV que ganha o processo de transição de poder e, mais uma vez, é pacífico. Isto é algo excecional em África, mas há aqui um multipartidarismo muito presente, naturalmente. Mas pergunto, como navegar com os tubarões, fazer estas pontes e disputar a liderança, conseguindo manter a paz, e fazer os tais consensos?
Acho que é preciso respeitar as regras do jogo e em tudo o que existe temos regras que constituem os limites para o exercício do poder. Se as respeitarmos, é possível criar canais que favoreçam os entendimentos. Cabo Verde tem uma experiência muito positiva, porque desde sempre, desde a época colonial, as instituições funcionam aqui. Com a independência, não houve o desmantelamento dessas instituições, elas continuaram a funcionar. São instituições que se tornaram cada vez mais inclusivas, tanto as políticas como as económicas, e houve sempre o espírito do respeito das regras do jogo democrático. Isso tem contribuído para que Cabo Verde seja uma experiência de sucesso, do ponto de vista do funcionamento da democracia. Mas também tivemos sempre um compromisso por parte das lideranças políticas cabo-verdianas, no tempo do partido único e depois com a democracia, com a busca de melhores condições de vida e de mais equidade para todos os cabo-verdianos. Nesse sentido, acho que as coisas têm de funcionar, independentemente do partido que estiver no poder ou, circunstancialmente, de quem estiver no governo ou na presidência da república.

Na entrevista ao Diário de Notícias, disse: "Sou de uma nova geração de políticos cabo-verdianos, não faço parte das disputas e ressentimentos políticos que vêm de trás, que acabam por condicionar o processo político cabo-verdiano". Considera que esse retrato que se passa na política também transparece muito para o mundo empresarial? Em Cabo Verde e na lusofonia precisamos de uma nova geração de empresários sem complexos com o passado?
Sim. O poeta Fernando Pessoa dizia: "Sinto-me nascido, a cada momento, para a eterna novidade do mundo". Quem está a liderar uma empresa, tem toda a ecologia organizacional, tem todo o ambiente contextual da organização. Neste momento, o que acontece é que as mudanças são muito rápidas, o ambiente é caótico, é incerto, e há enormes novidades todos os dias. Tem de haver uma grande inteligência adaptativa das lideranças e uma grande capacidade de construir soluções novas todos os dias.

Cabo Verde tem uma experiência muito positiva, porque desde sempre, desde a época colonial, as instituições funcionam aqui. Com a independência, não houve o desmantelamento dessas instituições, elas continuaram a funcionar.

E isso tem de ser feito com uma grande abertura de espírito, não se pode estar a liderar pensando permanentemente na reconciliação com o passado. É pensar em soluções cada vez mais inovadoras para o futuro que se está a construir a cada minuto. É essa a dinâmica, mesmo quando estamos numa empresa que é um sistema aberto e onde há uma permanente interação entre a empresa e o seu meio ambiente contextual. A própria ideia do sistema é que o todo é maior do que a soma das partes. Quem lidera deve estar ciente destas sinergias, destas interações permanentes e destas novidades que surgem a cada minuto, para poder fazer a ponte com o futuro.

Ao longo da sua história, o arquipélago tem revelado vários casos de sucesso a nível de lideranças, que se destacam na diáspora e não só. O que é que está no ADN dos cabo-verdianos para terem sucesso na liderança, na sua opinião?
Acho que é essa abertura, essa grande liberdade de espírito que caracteriza o cabo-verdiano. Penso que as circunstâncias do nascimento de Cabo Verde, da sua abertura ao mundo, do facto de os cabo-verdianos terem apostado desde sempre na educação, é um fermento para qualquer processo transformacional. O facto de a emigração ser uma componente importante da identidade cabo-verdiana dá-nos essa latitude para sermos perspicazes, inteligentes e podermos estar à altura dos desafios que se colocam a Cabo Verde em cada momento. Mas é preciso ter em conta que o facto de termos um país sem recursos naturais tradicionais, um país com grandes carências de recursos, onde a natureza é extremamente agreste, exige uma enorme capacidade emocional para viver aqui. Já se dizia que nós nascemos todos os dias para construir um país, inventar um país para viver, e é exatamente isso. Isso dá-nos resiliência, capacidade emocional e a inteligência adaptativa para podermos fazer a diferença e transformar essas debilidades em enormes fortalezas para podermos viver aqui e construir um país. Acho que são esses elementos humanos, naturais e espirituais que fazem a diferença em Cabo Verde. As nossas riquezas são as pessoas.

Neste momento, assistimos ao crescimento dos extremismos na Europa e não só. Acha que os líderes e os cidadãos revelam menor abertura neste contexto político mundial que vivemos atualmente?
Não necessariamente, porque o mundo está a ficar cada vez mais complexo. E quanto mais aumenta a complexidade, maior a tendência, mesmo em empresas e organizações, para procurar respostas simplistas. Temos de procurar respostas que respondam à complexidade dos tempos atuais - é esse o principal desafio que temos neste momento: não responder de forma simplista a desafios extraordinariamente complexos. É claro que nos momentos eleitorais, começamos por simplificar as coisas e por polarizar, mas aqui começam a surgir os extremismos. E, se reparar, as soluções extremistas são reducionistas e simplistas, e é por isso que ganham adesão, mas depois os governos mais extremistas e populistas, rapidamente falham na governação porque as suas propostas são extremamente simplistas. É fundamental que as lideranças mundiais, as lideranças das empresas e de outras organizações, tenham em mente que liderar, hoje, implica apreender as diferentes dimensões desse contexto extraordinariamente complexo em que vivemos. Portanto, as respostas devem estar à altura da complexidade dos tempos atuais.

Os tempos atuais implicam uma maior inclusão. As mulheres também são, muitas vezes, grandes líderes e empreendedoras em África. Que papel relevante têm tido as lideranças femininas no desenvolvimento do arquipélago?
Aqui, pediria desculpa, mas acho que as lideranças se podem conjugar no masculino ou no feminino. Muitas das discussões a propósito das lideranças consideram que as mulheres têm uma maior capacidade intuitiva. E essa maior intuição das mulheres pode levá-las a que, em determinadas circunstâncias e contextos, exerçam com muito mais efetividade as lideranças. Mas há um grande professor brasileiro, autor de um livro muito interessante intitulado A Arte e a Ciência de Ser Dirigente, que dizia que há elementos ilógicos, irracionais, intuitivos da liderança, em que as mulheres são muito mais competentes e capazes. Mas também há os aspetos mais racionais e mais científicos, que têm a ver com algumas atividades da liderança. De todo o modo, conseguiria identificar muitas mulheres que são líderes excecionais, assim como também vejo homens que são líderes excecionais. Independentemente de ser homem ou mulher, acho que desde que desenvolvam as suas habilidades, conseguem exercer liderança com muita efetividade. Claro que as mulheres têm estado em desvantagem ao longo dos anos, por isso, temos de focar-nos nas mulheres bem-sucedidas como exemplo. Permita-me um detalhe: a partir de 2008, decidi que teria paridade no governo, mas quando acabei de o formar, em 2011, tinha mais ministras do que ministros. E eram ministras em áreas fundamentais da governação. Sabemos que quem manda no governo é o ministro das Finanças e, durante muito tempo, a ministra das Finanças foi, talvez não uma Dama de Ferro, mas uma Dama de Prata.

Há muitas mulheres e homens empreendedores, mas por vezes é difícil passar das ideias à prática. O que terá de ser alterado para passarmos do papel à realidade? Faltam recursos humanos mais qualificados e atrair capital humano?
Muitas vezes tem a ver com a liderança. Temos de ter capacidade de orientar as ações para resultados e, claro que num pequeno país como Cabo Verde, pensamos muito além da nossa capacidade de realização, devido à escassez de recursos. Mas acho que a realização das políticas e das ideias tem muito a ver com a liderança. E, dito isto, a liderança não está só no topo da organização, temos liderança a todos os níveis das organizações e cada um exerce-a ao seu nível. Claro que quem está no topo da organização tem mais aspetos estratégicos do que tático-operacionais, mas aí é preciso que a cada nível haja lideranças fortes e orientadas para a aquilo que for decidido. Depois, tem a ver com a avaliação de desempenho individual e organizacional. O individual no sentido do cumprimento dos objetivos preconizados, e os organizacionais a nível de realização plena dos objetivos. A nível de uma empresa é muito mais fácil do que a nível de um país, com todos os aspetos que se referem às disputas políticas e que têm a ver com as políticas públicas. Porque as empresas não são um todo homogéneo, são um sistema de vários elementos em interação. E há um grande teórico inglês das organizações que diz que uma organização é uma sociedade organizacional pluralista. E gerir esse pluralismo é muito difícil, mas geri-lo ao nível da Administração Pública, é ainda mais difícil esta gestão da liderança e realização dos objetivos. No caso concreto de Cabo Verde, tem a ver essencialmente com uma enorme escassez de recursos. O cabo-verdiano tem uma grande ânsia de desenvolvimento, tem mais olhos que barriga, a sua capacidade para pensar em todas as coisas que quer fazer é maior do que a capacidade que tem para a implementação.

Penso que as circunstâncias do nascimento de Cabo Verde, da sua abertura ao mundo, do facto de os cabo-verdianos terem apostado desde sempre na educação, é um fermento para qualquer processo transformacional.

Por vezes, as lideranças queixam-se da falta de fundos. Como é que Cabo Verde pode atrair mais capital nacional e internacional para ajudar os líderes a desenvolver projetos vencedores?
Penso que há dias, num debate com Santos Silva, o presidente da Assembleia da República portuguesa, ele falava sobre os outros capitais. Ou seja, atualmente, quando falamos em capital, temos de explicar sobre qual estamos a falar.

Temos o capital financeiro, o capital humano, o capital social, o capital cultural, e é mesmo isso: Cabo Verde tem uma enorme escassez de capital financeiro. Temos uma reduzida capacidade de autofinanciamento, mas também uma reduzida capacidade de endividamento. Temos de fazer a diferença, potencializando os outros capitais que temos. E costumo dizer que Cabo Verde tem de procurar a excelência em tudo o que faz, para poder destacar-se, para poder ser notado e ter argumentos para mobilizar o capital financeiro. Dito isto, haverá sempre possibilidades de mobilizar capital financeiro, depende da nossa inteligência, capacidade de liderança e do facto de podermos ser uma referência. Costumo dizer que temos de ser excelentes em tudo o que fazemos. Quando o governo dos Estados Unidos da América lançou o programa Millennium Challenge Account em 2003, fomos o primeiro país do mundo a apresentar a nossa proposta de financiamento. Portanto, quando se elabora um relatório que diz que Cabo Verde é um dos países mais bem governados do mundo - Cabo Verde é um país com liberdade de imprensa, com liberdade de expressão, é um país sem corrupção e com transparência -, isto chama a atenção das instituições financeiras e do mundo desenvolvido. É a partir daí que temos os argumentos para conseguirmos mobilizar o capital financeiro, que é sempre fundamental para o desenvolvimento do país. Afinal, não nos temos saído assim tão mal nestes 47 anos da nossa independência.

Falando de capital humano, faltará ainda uma maior ligação entre as universidades e as empresas para esse desenvolvimento de melhores líderes?
Sim, claramente. E como somos ilhas, cada organização criada em Cabo Verde transforma-se numa outra ilha e a questão não é o isolamento das organizações, a questão é a interdependência ou morte.

No Brasil, comemorava-se há pouco tempo os 200 Anos da Independência e as palavras de ordem eram "independência ou morte", agora é interdependência ou morte. Acho que é preciso muito mais sinergia, cooperação e integração entre as universidades e as empresas, as escolas de formação profissional e o governo, etc. Claro que falta isso em Cabo Verde, falta a criação desse espaço para potenciar a integração e articulação de políticas no domínio da formação, do Ensino Superior e da investigação.

Nas políticas públicas para 2023 haverá apostas em alguma área-chave que queira referir?
Em Cabo Verde quase tudo é prioritário e chave, mas temos muitas áreas essenciais. Temos, por exemplo, a área das energias renováveis.

Deus ou o criador, não pôs aqui nada, nem ouro, nem diamantes, nem petróleo, mas felizmente, descobrimos que nos deixou muito vento, muito mar e muito sol. O que mais brilha aqui é o sol. Angola tem o petróleo e a Sonangol do petróleo, nós aqui podemos ter a nossa Sonangol do vento, é uma área em que podemos ir longe. Temos o mar e, afinal, Cabo Verde pode ser grande, porque temos 800 mil quilómetros de território marítimo. Somos um Estado oceânico e temos enormes potencialidades nessa matéria, temos muito espaço nesta área para conceção, integração e articulação de novas políticas públicas para o mar. Temos também as tecnologias informacionais, portanto, afinal temos recursos que podemos aproveitar para fazer de Cabo Verde grande e realizarmos a nossa ânsia de desenvolvimento. Com isto podemos avançar com a nossa visão de construir um país moderno, competitivo e com oportunidades para todos. Estas são as duas áreas que sublinhava.

Quando se elabora um relatório que diz que Cabo Verde é um dos países mais bem governados do mundo Cabo Verde é um país - com liberdade de imprensa, com liberdade de expressão, é um país sem corrupção e com transparência -, isto chama a atenção das instituições financeiras e do mundo desenvolvido.

No contexto da guerra na Ucrânia, muitos países estão a acelerar esta estratégia e a incorporar a área das energias renováveis como prioritária. Considera que em Cabo Verde a guerra também está a acelerar essa aposta?
Sim, acho que a guerra veio obrigar-nos a aproveitar melhor algumas oportunidades e veio acelerar algumas coisas. Tenho dito que esta guerra vai impactar a África muito fortemente, mas espero que seja uma oportunidade para o continente africano e, particularmente, para Cabo Verde. Porque os momentos disruptivos e de rutura - e esta guerra está a constituir um momento de rutura -, permitem a aceleração da constituição de uma nova ordem mundial e vai exigir de todos, os que não queiram ficar à margem, que acelerem o passo e tomem medidas também disruptivas para fazer face a este momento.

Portanto, com a escassez de alimento e o aumento exponencial do custo da energia, com certeza que África no seu todo, e em particular Cabo Verde, vai ter de tomar algumas medidas para revolucionar alguns processos produtivos. Além disso, também deverá aproveitar este momento para revolucionar o processo de implementação de algumas políticas públicas, designadamente na área das renováveis, mas também na área da economia, para termos um crescimento mais inclusivo e melhorarmos alguns fatores de competitividade.

E os líderes da lusofonia estão preparados para esse momento tão disruptivo, na sua opinião?
Não há alternativa, têm de preparar-se para isso, mas não sei se estaremos todos preparados para a complexidade do momento. Atual- mente, os governantes em todo o mundo têm de ter essa capacidade e nem sequer há tempo para aprendizagem. É ensaiar e representar ao mesmo tempo, portanto, penso que, tendo em conta as circunstâncias atuais e o que está a acontecer no mundo, há que ter essa consciência, fazer-se rapidamente esta aprendizagem e avançar.

Os líderes que chegaram à maturidade nas últimas décadas cresceram na globalização, e o desenvolvimento mundial fez-se com base na globalização. Este contexto da guerra está a pôr em causa a globalização e, na opinião de vários economistas, poderá haver um retrocesso. Como analisa este impacto do ponto de vista do comportamento das lideranças perante este novo statu quo, que ajustamentos fazer perante este eventual retrocesso da globalização?
A adaptação tem de ser feita todos os dias, é um processo permanente. A guerra na Ucrânia, o surgimento dos movimentos nacionalistas, populistas e mais identitários, vão poder pôr em causa a globalização. O mundo está tão interpenetrado neste momento com o desenvolvimento dos transportes e das tecnologias informacionais... Por exemplo, agora que houve as eleições no Brasil, todo mundo está a acompanhar as eleições como se também tivesse votado. Porque as eleições no Brasil têm impacto nas políticas ambientais de todo o mundo, assim como todo o mundo está a acompanhar as eleições intercalares nos Estados Unidos, para saber o que vai acontecer e quem vai ganhar mais espaço. Quando o primeiro-ministro britânico decide aumentar impostos, toda a gente vai tentar perceber as consequências económicas dessa decisão para a Europa e para o mundo.

Às vezes fala-se de África como um todo, mas quando analisamos a fundo, percebemos que temos 55 países em África e colocar todos eles a conversar da mesma forma, é extraordinariamente complexo e difícil.

Isso mostra a enorme interpenetração do mundo neste momento e é isto que é a globalização. As eleições nos Estados Unidos podem provocar a queda da bolsa de valores em Londres ou Hong Kong. É difícil bloquear isto, mas haverá sempre altos e baixos, momentos mais ou menos caóticos, e as lideranças mundiais e empresariais, que estão a ser apanhadas no meio desta turbulência, devem ter serenidade suficiente para ir analisando as questões e adaptando-se em função dos acontecimentos. Fundamentalmente, neste momento, lembraria o Goleman, uma grande inteligência emocional. Agora, o líder tem de ter quase a paciência do pescador e ter a capacidade de pescar um bom peixe sempre que surgir a oportunidade.

E sendo a economia cabo-verdiana uma economia aberta, está preocupado com o impacto que isso possa ter ainda no ano de 2022?
A questão essencial é que todos os países, grandes e pequenos, estão a ser afetados. Claro que os pequenos Estados insulares enfrentam uma turbulência muito maior e as tempestades parecem estar mais perfeitas. Somos muito mais vulneráveis e sensíveis a choques externos, e esses movimentos sísmicos acabam por atingir fortemente um país como Cabo Verde. Agora, desde 1460 que vivemos em crise, desde que os portugueses chegaram cá. Já estamos habituados a gerir crises, aliás, há tempos escrevi um livro intitulado Gestão das Impossibilidades, e Cabo Verde é isso, é um país que gere impossibilidades desde sempre. Os portugueses, quando cá chegaram, descobriram que era difícil colonizar Cabo Verde e ter aqui uma população. E a primeira Carta Régia feita foi para que em 1462 houvesse incentivos para aqueles do reino que quisessem vir para cá viver. Cabo Verde tem de estar no centro das suas vulnerabilidades e criar condições para sermos mais resilientes e podermos ir gerindo a crise. Posto isto, digo o seguinte: quando assumi o governo, o primeiro primeiro-ministro com que contactei foi Guterres. Na altura, perguntou-me como estavam as coisas, ao que respondi que estavam difíceis, porque estava ainda a começar como primeiro-ministro. Ele disse-me que não me enganasse, porque cada dia ia ficar mais difícil e complicado. E isto é verdade, porque podemos até ter a sensação de que o dia de amanhã vai ser mais simples do que o de hoje, mas não, amanhã é sempre mais complexo do que hoje. O mundo vai ficar cada vez mais complexo e o ambiente vai ficar cada vez mais caótico. Precisamente por isso, atualmente, qualquer líder tem de ter capacidade adaptativa e capacidade de ler todos os dias, e capacidade de criar soluções adaptativas para fazer face ao momento. Da mesma maneira que temos smart power, também temos de ter o smart líder que seja capaz de ter a inteligência para liderar nesse ambiente caótico, disruptivo, e completamente diferente do tempo em que nos formámos.

Na sua opinião, que lições ficaram da pandemia que nos podem ser úteis para o futuro enquanto líderes?
Acho que aprendemos lições com a pandemia, desde logo, que temos de cuidar mais a nossa aproximação com os animais. Na verdade, a pandemia veio mostrar algumas coisas importantes. A primeira, é a fragilidade das políticas públicas, porque numa intervenção do antigo presidente Barack Obama, ele disse que daí a mais ou menos cinco anos teríamos uma pandemia com as características desta que acabámos por ter.

Então, porque é que não se tomaram medidas? Há sempre uma décalage entre a identificação de um problema e a formulação de políticas públicas, e a pandemia veio chamar-nos a atenção sobre essa questão. Também nos chamou a atenção para a necessidade de uma maior cooperação entre países, também para a importância do multilateralismo, porque, afinal, o mundo não é só competição, há que dar espaço para a negociação e solução de determinadas questões mundiais. E há determinadas coisas em que as soluções nunca poderão ser nacionais e terão sempre de ser a nível global. E há que dar espaço para que tenhamos melhores condições de governança. Terminaria dizendo que uma das consequências da pandemia é que tivemos a globalização e uma maior interpenetração entre os países, mas não tivemos ao mesmo nível o desenvolvimento de instituições capazes de garantir uma governança global mais efetiva.

Gosto muito de Amílcar Cabral pela forma como mobilizou, a partir de um ambiente extremamente divergente, os voluntários para a luta pela independência.

Já referiu que este é um momento de oportunidade e para melhorar a governança, as políticas públicas e combater a crise climática. Há um atraso nesta preparação?
Há um grande atraso e, geralmente, temos ido com muito atraso em relação aos diferentes fenómenos que têm acontecido na Humanidade. Isso tem a ver um pouco com a ordem mundial e a pluralidade de situações. Às vezes fala-se de África como um todo, mas quando analisamos a fundo, percebemos que temos 55 países em África e colocar todos eles a conversar da mesma forma é extraordinariamente complexo e difícil. É também isto que acontece a nível mundial: temos sociedades cada vez mais polarizadas, temos um negacionismo em relação às alterações climáticas e, muitas vezes, estamos a caminhar perigosamente para o abismo. Nesses momentos, é preciso haver lucidez para colocar o dedo na ferida e ir, pacientemente, negociando para encontrarmos as soluções necessárias. Já vamos no COP27 e as medidas ainda são muito tímidas. O fundo para financiar toda a adaptação e fazer às alterações climáticas, praticamente ainda não foi implementado. Já chegámos à conclusão que não vamos atingir 1,5 graus Celsius, vamos ultrapassá-los. A acidificação dos oceanos continua, o aumento do nível das águas do mar também, é como se estivéssemos a caminhar para o abismo sem que todos estejam conscientes disso. Infelizmente, ainda não há uma consciência suficientemente sólida relativamente a essas questões, não há um consenso mundial sobre essas questões, e os consensos não são fáceis nessas circunstâncias. É preciso não parar de falar sobre essas questões e procurar criar uma consciência mundial orientada para a resolução de questões como as alterações climáticas, as desigualdades, as grandes assimetrias entre regiões e também os conflitos em África e agora na Ucrânia.

Nos seus anos de experiência política, que líder diria que o tem inspirado mais?
Essa é a pergunta mais difícil até agora, porque não gosto de escolher apenas um, precisamente porque não há um estilo único de liderança, mas há líderes que admiro no mundo. Gosto muito de Winston Churchill pela sua capacidade visionária, gosto muito de Obama pelo smart power que exerceu na sua presidência, gosto muito do Papa Francisco pela forma como tem sabido enfrentar os desafios da Igreja e pela forma como tem abordado essas questões. Gosto muito de Amílcar Cabral pela forma como mobilizou, a partir de um ambiente extremamente divergente, os voluntários para a luta pela independência. E, permita-me uma nota pessoal, gosto muito da minha mãe pela forma como enfrentou os diferentes desafios da educação dos filhos, pela perseverança e pela generosidade. Portanto, gosto de vários líderes a nível mundial. Também gosto muito de Felipe González, que muito jovem assumiu os desafios da transição política em Espanha e teve uma grande capacidade analítica e de inteligência emocional. Teve uma grande capacidade de relacionamento num ambiente complexo em que tinha gente que tinha vindo do Franco e tinha jovens com expectativas muito elevadas. Essa capacidade analítica, essa capacidade interpessoal, essa capacidade cognitiva, essa generosidade, essa coragem e a vontade de realizar diferentes ambições, tudo isto para mim faz grandes líderes. Peço desculpa por não ter escolhido apenas um, mas um líder faz-se de acordo com as circunstâncias porque, afinal, não há um estilo único de liderança, há vários, e a liderança depende muito dos contextos e momentos.

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