"Guterres tem que ser isento, não neutral. Só podia ser neutral se fosse amoral"

O antigo embaixador de Portugal na ONU fala ao DN do papel do secretário-geral, defendendo a posição de António Guterres.
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O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, foi acusado por Israel de ter quebrado a imparcialidade do cargo. Concorda com esta leitura?
Não. Acho que a função do secretário-geral é defender os princípios da carta das Nações Unidas e o engenheiro António Guterres, ao dizer o que disse e da maneira como disse, não só sublinhou aquilo que eram os princípios básicos da ONU como dignificou o cargo. O engenheiro António Guterres, na questão da Ucrânia, também se colocou de uma forma que foi lida negativamente por Moscovo, precisamente pela mesma razão, precisamente porque decidiu lembrar aquilo que são os princípios fundamentais da ONU.

E agora foi Israel.
Na questão de Israel, da Palestina e do Hamas, Guterres disse duas coisas e só está a ser sublinhada uma. Disse uma coisa que naturalmente funciona bem aos ouvidos de Israel, que é a questão da denúncia da ação terrorista do Hamas e do caráter absolutamente inaceitável de ter atacado populações civis, ter morto civis de forma cobarde e, de forma cobarde, ter raptado civis que agora procura instrumentalizar. Mas também disse uma coisa que é uma evidência e que muitas vezes a cobardia e a complacência no plano internacional têm evitado dizer. Disse que isto não aconteceu do nada. Porque é preciso percebermos que o Hamas faz aproveitamento daquilo que é a radicalização da injustiça de décadas a que a população palestina tem sido sujeita. Tem havido, por exemplo, contra a vontade das Nações Unidas, a construção de colonatos na Cisjordânia.

É isso que está a ser usado contra Guterres...
Eu tenho o maior dos respeitos por Israel e mais do que isso, Israel é um país cuja existência não está em causa e não deve estar em causa pela comunidade internacional. Mas a segurança de Israel, para mim, não é superior à importância da segurança dos palestinos e da vida dos palestinos. E enquanto Israel tem um Estado para proteger os seus cidadãos, só a comunidade internacional, isto é, as Nações Unidas, pode proteger os palestinos. É um bocadinho irónico, devo dizer, ver Israel a acusar as Nações Unidas de falta de independência quando Israel não cumpre as próprias resoluções das Nações Unidas. E mais: se eu disser que sou a favor da existência do Estado de Israel com fronteiras definidas à luz do direito internacional, serei considerado um adversário de Israel. Porque Israel não aceita as fronteiras que o direito internacional lhe atribuiu.

Voltando ao papel do secretário-geral, Kofi Annan disse uma vez que tem que ter imparcialidade, mas isso não significa neutralidade. Concorda?
É evidente que o secretário-geral não pode ser neutral, o secretário-geral tem um problema histórico, que é ser a voz do Conselho de Segurança. E fora desse tempo em que é a voz do Conselho de Segurança, quando o Conselho de Segurança está bloqueado, o secretário-geral tem apenas que ecoar os princípios gerais das Nações Unidas, aqueles que vêm da Carta da ONU. Não é por qualquer razão que Boutros Ghali não foi reeleito secretário-geral da ONU. Não foi pela simples razão de que, ao defender os princípios gerais da Carta, se colocou contra um Estado, que eram os EUA. E, portanto, o engenheiro Guterres sabe que, ao dizer estas palavras, está a defender aquilo que são os princípios das Nações Unidas, que é a razão pela qual ele foi eleito. Como português, fiquei muito honrado por aquilo que ele disse e fiquei altamente marcado por aquilo que ele disse. Ele tem que ser isento, não tem que ser neutral de maneira nenhuma, porque só podia ser neutral se fosse amoral. E ele não é amoral. Nós aqui em Portugal, que o conhecemos bem, sabemos perfeitamente bem que os princípios e os valores são a coisa que Guterres mais acarinha.

Israel pede agora a demissão de Guterres. Tem força para o fazer?
Israel tem a mesma força que tem um país que incumpre com todas as resoluções de Conselho de Segurança. Quer dizer, é evidente que se amanhã os EUA, a França, o Reino Unido, a Rússia, a China ou alguns deles subscreverem essas mesmas posições, a fragilidade do papel do secretário-geral aumenta. Eu diria, no entanto, que o secretário-geral, neste momento, tem um mandato e que o deve levar até ao fim e que só honra às Nações Unidas a circunstância de ter um secretário-geral que foi capaz de levantar bem alto os princípios da Carta das Nações Unidas.

Na história das Nações Unidas só houve um secretário-geral que se demitiu, que foi logo o primeiro, o norueguês Trygve Lie.
Exatamente. E outro [Dag Hammarskjöld] morreu num acidente de avião, provavelmente num atentado, no Congo. Mas houve outro que não viu o seu mandato renovado, que foi o Boutros Ghali, porque se opôs aos EUA, que não o deixaram renovar o mandato. Foi um conjunto de declarações que basicamente pôs em causa o papel dos EUA. Em relação ao engenheiro Guterres, eu acho que só honra as Nações Unidas ter um secretário-geral que diga estas coisas, que são, volto a dizer, banalidades. Isto se o mundo não tivesse uma complacência há muito tempo estabelecida. Nomeadamente esta entidade que tem uma postura absolutamente medíocre no Médio Oriente que se chama a União Europeia, que só serve para pagar estragos feitos nas guerras e que é incapaz de ter uma posição comum e que hesita sempre entre uma grande complacência em face às questões de Israel e alguma sensibilidade moral face à Palestina e não consegue a partir daqui ter nenhuma decisão definitivamente satisfatória. E que ainda outro dia titulou, com as declarações da senhora Ursula von der Leyen, um dos momentos mais baixos da história da sua própria política externa. Eu acho que Guterres fez muito bem e Guterres não pode ser neutral e acho que o pedido da sua demissão por parte de Israel deve ter como resposta um encolher de ombros.

Para finalizar, penso que a frase de Trygve Lie, de que o cargo é "o mais difícil do mundo" estará na sede das Nações Unidas.
O que Trygve Lie dizia, no auge da Guerra Fria e no início das Nações Unidas, era porque sabia que no próprio quadro do Conselho de Segurança e nos membros permanentes com o direito de veto havia países que têm posições completamente diferentes e leituras completamente diferentes. O secretário-geral tem que ser uma espécie de representante de uma conflitualidade e portanto, quando a situação, quando o Conselho de Segurança decide sobre uma questão que não importa de forma vital a qualquer membro permanente do Conselho de Segurança, o secretário-geral tem um imediato poder e um imediato poder que pode exercer. Agora, quando há membros do Conselho de Segurança profundamente envolvidos, é evidente que a sua situação torna-se impossível. Eu não excluo que a situação, a certo momento se possa tornar impossível para António Guterres, num cenário em que os EUA subscreverem as posições de Israel. Guterres tem que ter a confiança dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Se não tiver essa confiança, eu espero que o Brasil, que tem a presidência neste momento, seja capaz de tomar posições que permitam encontrar um caminho comum.

susana.f.salvador@dn.pt

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