A cimeira entre a União Europeia (UE) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), que decorre amanhã e depois em Bruxelas, é uma aposta para o semestre da presidência espanhola do Conselho da UE. Só o facto de se realizar oito anos após a última cimeira já pode ser considerado uma vitória? São boas notícias, não diria que é uma vitória para Espanha, mas são boas notícias para a Europa e para a América Latina, precisamente porque se passaram oito anos. Mas aquilo que inibiu o desenvolvimento e o avanço destes encontros continua a existir, continua presente, nomeadamente a situação política e institucional de crise que se vive na Venezuela. E desse ponto de vista as coisas não são assim tão animadoras. Mas retomar o diálogo, pôr a funcionar mecanismos que foram criados há já algum tempo - as cimeiras começaram em 1999 -, é positivo. É sempre bom voltar ao encontro com o outro..Falou da Venezuela, também há problemas na Nicarágua, em Cuba. Nestas cimeiras existe margem de manobra para falar de liberdades políticas ou direitos humanos? O tema dos direitos humanos e da democracia foi um tema recorrente no início destas cimeiras. Hoje diria que, olhando para outros encontros que se realizam, digamos assim, de forma paralela, como a Cimeira Ibero-Americana, em Santo Domingo, ou a própria Cimeira da CELAC, que se realizou no início do ano, estes temas não reúnem um consenso alargado nas posições que se vão adotando. Em relação a estes temas é fácil ver as diferenças, as contradições, a fragmentação da região. Eu diria que a grande aposta nesta cimeira relativamente à discussão, e para evitar precisamente voltar a criar obstáculos que não permitem o consenso, serão temas em que há um mínimo de aproximação, de consenso. Volto a repetir a palavra porque é muito importante. Falo de temas como o combate às alterações climáticas, a reforma do sistema financeiro internacional, as políticas migratórias, a segurança alimentar, a transição energética... São assuntos em que tanto a América Latina como a União Europeia têm tido um papel, sofrem o impacto e podem fazer alguma coisa. São temas em que seguramente haverá algum consenso. E eu penso que a aposta, sobretudo no âmbito da presidência espanhola da UE, será conseguir estes mínimos, apostar nestes mínimos e não entrar no debate sobre qual é o país mais democrático. Prova disso é que nesta cimeira todos foram convidados, seguiu-se a metodologia da ONU e da própria Cimeira Ibero-Americana, em que todos os Estados que formam parte destes dois blocos são convidados a participar..Ainda não sabemos se o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, vai ou não estar... Será uma dúvida até ao último minuto..Falou muitas vezes em consenso, porque na realidade temos de um lado 27 países e do outro 33 e as decisões têm que ser tomadas por consenso, o que é muito difícil com tanta gente. Falou também na necessidade de mínimos. Acha que se corre o risco de nem sequer se conseguir chegar aí ou até de nem haver uma declaração conjunta no final? Parece-me que vamos - e eu digo vamos porque quero incluir-me na esperança - conseguir os mínimos. Europa e América Latina têm de assumir que há problemas globais que têm de enfrentar juntas. Daí eu ter referido aqueles temas, sobre os quais haverá seguramente mínimos e haverá declarações. Temos, se calhar, algumas expectativas que poderão sair frustradas. Mas isso terá a ver com o apoio da parte da América Latina às sanções contra a Rússia..A questão ucraniana promete ser um espinho nas relações, já que na América Latina não tem havido consenso, nem sequer com as resoluções da ONU. Como é que se pode descalçar esta bota, como se costuma dizer em português? Não sei se vai ser descalçada. A Europa tem que perceber que efetivamente está a desenvolver-se um movimento de não-alinhamento que está a absorver o chamado Sul global, que inclui a China e a Índia. Um não-alinhamento sobretudo em relação à aplicação de sanções, porque os Estados latino-americanos, a grande maioria, têm sido defensores do respeito e da inviolabilidade das fronteiras. Portanto, aí não há grandes dúvidas. Sempre foram, e uma região que foi alvo de intervencionismo durante tanto tempo não poderia manifestar-se de outra forma, de forma contrária. Mas o tema das sanções é visto com muitas dúvidas, com muitas reticências, porque há um custo, e os países latino-americanos não me parece que queiram pagar por isso..E também porque alguns foram ou são eles próprios também alvo de sanções... Há a experiência, o histórico, das sanções, em Cuba, na Venezuela, na Nicarágua, que, enfim, não são democracias. Sabemos isso. Mas há também aqui um alinhamento conveniente com aquele que é o principal parceiro comercial de uma grande parte dos Estados da América Latina, que é a China. E não podemos fechar os olhos a isso. Há este não-alinhamento conveniente relativamente à política da China, mas também pode ser visto como algo autónomo, uma força autónoma, como ocorreu, inclusive, durante a Guerra Fria. Um não-alinhamento que é legítimo..Falando na China, parece que tem havido nos últimos tempos uma procura por países europeus, para lá de Espanha e Portugal, da melhoria das relações com a América Latina. É precisamente para tentar servir de contrapeso à China? Não é assim tão simples. A Europa precisa de poder contar com aliados, com parceiros, sobretudo no combate aos problemas globais, que passam também pelo deteriorar da democracia, dos direitos humanos, enfim, dos valores que assumimos como base ou baluarte do projeto europeu, e também do ponto de vista comercial. Mas o interesse da Europa pela América Latina sempre foi mais diversificado daquilo que poderia parecer, remonta aos anos 70, com a Internacional Socialista, dirigida pelo alemão Willy Brandt, que se introduziu na região para promover a democracia. Depois o envolvimento com o Grupo de Contadora, que se foi alargando para o que chamamos o Grupo do Rio e que mais tarde institucionalizou um diálogo com os Estados da Europa. A relação entre a América Latina e a Europa sem dúvida deve muito a Espanha e a Portugal por razões óbvias. A língua é uma delas, a cultura, etc. Mas é mais profunda do que isso..A China, apesar de ser um importante parceiro comercial, não é o principal investidor, mesmo do ponto de vista de cooperação e desenvolvimento. Se olharmos só para o comércio, a América Latina não ocupa um lugar prioritário, de preferência para os estados da UE. Mas a UE tem investido, de facto, muito na região, que continua a ter na UE o principal investidor, muito mais do que a China. Não é só no âmbito da cooperação e desenvolvimento, o que é muito importante. Aliás, na última Cimeira Ibero-Americana, que foi uma espécie de teste, um preâmbulo de introdução a esta cimeira UE-CELAC, houve consenso em relação à cooperação ibero-americana porque o tema da cooperação é muito mais fácil, porque envolve outros agentes que não são os próprios governos, como universidades, fundações ou ONG, empresas... a sociedade civil como um todo. Pegando nas universidades, na educação, este é um tema da maior importância, em que a Europa e a América Latina podem fazer muito. Já têm feito bastante. A UE inclui a América Latina como beneficiária do Programa Erasmus Plus, do Horizonte, de outros projetos. É um dos âmbitos em que poderemos dizer que se tem feito bastante, mas ainda podemos dar o salto qualitativo. A Europa joga um papel importante como doador, como investidor, nomeadamente quando falamos de áreas de cooperação..À margem desta cimeira, há anos que também está bloqueado o acordo comercial entre a UE e o Mercosul. Será que se poderá desbloquear agora? Num primeiro momento, a UE foi um modelo ideal do ponto de vista da integração comercial e económica e promoveu a integração em outros espaços, nomeadamente na América Latina. Promoveu, estimulou e, portanto, começou a estabelecer e a criar mecanismos de diálogo e de aproximação, não só com o Mercosul. Mas sabemos que o Mercosul, dentro do espaço latino-americano, é a união aduaneira imperfeita mais bem conseguida. Ao mesmo tempo, de forma paralela, foi -se aproximando de outras sub-regiões. A América Central, a comunidade andina e depois apostou nas relações bilaterais com aqueles Estados mais vocacionados para o livre comércio, nomeadamente o México, a Colômbia, o Chile, o Brasil... Então aqui há uma dinâmica que envolve vários processos. Eu diria que nesta cimeira, se Espanha conseguir, como anfitriã, que seja tomada alguma decisão relativamente à renovação de acordos, nomeadamente com a Colômbia, Chile, México, com a comunidade andina ou, inclusive, com Cuba, com quem também há uma relação bilateral importante, já não ficaremos tão frustrados. Relativamente ao Mercosul, as expectativas são maiores, mas não sei se não vai demorar um pouco mais, pois as negociações continuam. Este é, ao mesmo tempo, um bom e um mau momento, porque a atenção da UE está virada para outros assuntos. Desse ponto de vista, não sei se será o momento ideal para que se consiga um avanço significativo. Vamos esperar pequenos passos com realismo. Eu penso que assim poderemos chegar ao objetivo final..A integração regional já era um sonho desde Bolívar, mas parece não ter raízes na América Latina. Alguma vez haverá uma União Latino-Americana como a União Europeia? A América Latina não quer formar uma União Europeia, isso é que é a verdade. Ou seja, não há vontade política. Na retórica, sim, porque faz sentido, sobretudo ir pegar nas ideias de Bolívar e de tantos outros que defenderam a integração como única via para a consolidação da autonomia da região. Portanto, é um projeto que fez sentido na época de Bolívar e continua a fazer sentido hoje. Mas não há vontade política. E depois há muitos obstáculos. Um deles passa pela perceção das necessidades. Os países da UE tinham uma perceção comum dos seus problemas, das suas necessidades, e porque era necessária a integração. Na América Latina não há essa perceção comum de ameaças. E não há nada que integre mais e melhor do que a perceção comum de ameaça, e na região não há. Para não falar de outros assuntos como a identidade, a falta de infraestruturas, a falta de recursos... Além de que a integração custa muito dinheiro. Impossível não é, é um projeto que faz todo o sentido, que teria consequências muito importante para uma região que está fora dos principais circuitos económicos e comerciais. Estamos a falar de uma região com grandes potenciais, recursos energéticos, pessoas... Mas não estão dadas as condições e a CELAC é uma prova disso. Surge numa conjuntura favorável de projetos de cooperação e integração financiados pela diplomacia venezuelana, e contava de facto com a simpatia de todos inspirada em Bolívar. A CELAC herda os esforços que foram feitos e a conquista que foram conseguidas precisamente do Grupo de Rio, que é o resultado da evolução do Grupo de Contadora, que nasceu como uma alternativa à hegemonia dos Estados Unidos. A CELAC herda tudo isto, e desse ponto de vista é muito rica. Mas não conseguiu até agora institucionalizar-se de forma robusta, sólida, porque está muito dispersa..Nesse aspeto, parece-me que as cimeiras ibero-americanas, com a Secretaria-Geral Ibero-Americana, têm tido mais sucesso... Eu diria que as cimeiras ibero-americanas deram o exemplo. A figura do secretário-geral tem sido muito importante na promoção da cooperação, não só ibero-americana, mas cooperação sul-sul, cooperação triangular. E há uma boa prática que foi agora seguida por esta cimeira UE-CELAC, que é a de não excluir ninguém. A Cimeira Ibero-Americana nunca excluiu Cuba. Gostemos ou não, estejamos de acordo ou não, a própria ONU não exclui. E esta política vai garantindo a continuidade, que é o que se quer, do funcionamento do fórum. O diálogo entre UE e CELAC, no quadro destas cimeiras, parou há oito anos precisamente porque excluiu a Venezuela..susana.f.salvador@dn.pt